Claro que eu sei que ela está em um lugar melhor. Que ela finalmente descansou. Que ela sabe que fez tudo por mim. Que eu sei que fiz tudo que podia por ela. Mas dói. E como dói a sua ausência. Como dói saber que amanhã não terá sorriso de reconhecimento, nem afago, nem palavras sábias. Fica o vazio da sua cama hospitalar e o vazio no meu coração.
Desde pequena, sempre fora assim. Minha avó e eu contra um mundo de absurdos. Se meus pais me esqueciam na escola, ela buscava. Se me enchiam de bolachas, ela fazia uma sopa. Se desafiavam a Deus, ela me levava à missa. Lutou por mim e pela minha sanidade quando eu não poderia fazê-lo. E eu sou toda gratidão.
Hoje, sou também medo. Medo de enfrentar o mundo de absurdos que bate a minha porta, aliás, que está sentado no meu sofá. Minha avó me ensinou a não cultivar o ódio, a compreender a condição humana que é falha, mas eu não aprendi completamente a lição. Ela disse que as pessoas podem mudar, que elas merecem perdão. Não consigo acreditar. Nunca consegui acreditar.
Essa mulher que está na sala, a quem devo chamar de mãe, tirou de mim o significado de infância. Eu mal entendia o que era o mundo e ela já me ensinava a chamar atenção, andar, sorrir e piscar os olhinhos. Participei de concursos de beleza sem nem andar direito na passarela, pintei meus cabelos quando nem tinha quatro anos, da escova progressiva ao clareamento dental, fiz de tudo. Um pouco mais tarde, ela obrigava-me a decorar textos enormes debaixo de surra, acordava-me de madrugada se preciso fosse. Não me levava para escola por conta de testes, sempre havia testes. Não me dava comida para que eu não engordasse, não me lembro de um simples brigadeiro roubado, sabia ser rigorosa.
Tudo valia a pena por um cachê, por uma apresentação breve, por uma chance, passávamos o dia de condução em condução em busca de serviço. Nunca tive o direito de brincar. Descobri o que as crianças de verdade faziam pelas personagens de novela.
Submeti-me a tantas tarefas humilhantes, a tantas situações constrangedoras. Trabalhei doente. Trabalhei em trajes degradantes para uma criança. Trabalhei. Trabalhei. Trabalhei. Sustentei minha casa. E não foi nada divertido. A cada negativa, uma surra. Eu deveria ser a melhor, não poderia haver nãos. O não era a prova da minha má vontade. Dizia que eu era ingrata, que não a amava. Era uma excelente chantagista. E eu só tinha seis anos.
Quando o sucesso chegou, foi ainda mais difícil. O dinheiro entrava. As brigas começaram. Eu era cria dela, um projeto particular, mas meu pai começou a perceber o meu potencial. O meu valor: literalmente. E não era justo que ele não usufruísse do meu talento. Era o seu argumento. Já o dela era que ele não havia mexido uma palha até então, eu pertencia a ela, como o objeto que sempre fui, a marionete.
Acordaram a vizinhança várias vezes. Partiram para a agressão física tantas outras. Minha mãe sumiu comigo, ficamos numa casinha de uma amiga dela de infância no interior bem afastado por uns dias. Meu pai aproveitou o deslize e entrou na justiça pedindo a minha guarda, não estava disposto a perder. Mas foi exatamente desse jeito que ambos perderam a galinha dos ovos de ouro. Minha avó, depois de mais essa loucura deles, pediu a minha guarda ao juiz.
Bastaram poucas visitas do serviço social para o juiz decidir me emancipar financeiramente dos meus pais e dar minha guarda à minha avó. O dia mais feliz da minha vida. Nasci de novo aos onze anos de idade.
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PJYd.
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Por Onde Andei
Roman pour AdolescentsNo quarto volume da série Nando, pela primeira vez, temos a visão simultânea dos dois protagonistas: Bruna e Carlos Eduardo. Ela, atriz desde menina, não está acostumada a confiar nas pessoas. Resolve os seus problemas a sua maneira, nem sempre acer...