Todos haviam partido. A comitiva real havia removido todos os bens valiosos, as joias e as relíquias sagradas, todo o ouro da cúpula da catedral e que ornava as paredes internas do castelo havia sido arrancado. Carroças e mais carroças deixaram a cidadela. Esvaziaram os silos de seus grãos. Os porcos e galinhas também foram transportados, e os mercadores e plebeus partiram atrás, bem atrás, da família real.
Os últimos que ficavam, os poucos soldados daquele destacamento, sabiam que tinham uma missão impossível, suicida até: proteger a cidadela e o castelo até a chegada do exército de reforço, que tardaria mais uns quinze ou vinte dias.
Mas as tropas inimigas já acampavam ao redor das mulharas e construíam suas armas de cerco.
Lorenzo caminhava de um lado ao outro pela muralha, assistindo à movimentação lá embaixo.
Vamos morrer. Ele disse ao companheiro. Isto é certo.
Que seja então uma morte valente e que Deus nos receba em seus braços. Respondeu Juan, embora tivesse medo. Pois uma coisa é bradar palavras de valentia, a outra é manter a espada empunhada quando os mouros iniciassem a invasão.
Os quarenta homens dentro daqueles muros dormiam e comiam mal. Alguns tentaram desertar e foram decapitados na praça do mercado.
Que sirvam de exemplo para todos os demais! Berrou o capitão.
Numa manhã, um mensageiro apareceu diante do portão, envolto num turbante branco e com a mensagem.
Entreguem o castelo que suas vidas serão poupadas.
Isto se alastrou rapidamente entre os soldados e quase todos concordavam que era melhor viver que morrer protegendo o castelo de um rei que nunca se importou com eles.
Mas o capitão mandou açoitar uma dúzia destes insidiadores e isto também intimidou os demais.
Uma flecha cruzou os ares e quase atingiu Lorenzo no peito durante a guarda. Tinha um bilhete enrolado nela que dizia:
"Invadiremos amanhã. Sabemos que são poucos e que serão dizimados, portanto, ainda há tempo para se salvarem."
Naquela noite, Lorenzo, Juan e outros vinte soldados invadiram o alojamento do capitão e esfaquearam-no incontáveis vezes, depois, arremessaram seu corpo por sobre a mulhara e escancararam os portões.
Foi assim que as tropas do sultão, sem luta, retomaram o alcácer, onde ele havia nascido e para onde jurara retornar um dia.
O sultão convocou os soldados insurgentes.
Vocês são traidores. Abandonaram a sua fortaleza, deram as costas ao seu senhor e apunhalaram o seu superior. O que devo fazer com vocês agora? Como aceitar em meu reino pessoas tão traiçoeiras?
Alguns dos soldados já tremiam e até choravam, certos que haviam sido enganados e que, agora, a punição seria a morte.
Mas Lorenzo se adiantou e disse.
Há apenas um Senhor, e ele governa sobre reis e plebeus. E você também terá de prestar contas a Ele quando o dia chegar.
O sultão acariciou o bigode, pensou por alguns instantes, enfim se levantou, dando a ordem.
Apanhem seus pertences e suas armas e sigam para o norte. Se forem apanhados em minhas terras outra vez, não terei clemência.
Os soldados fizeram um pacto de nunca revelar a verdade para ninguém. Caminharam para o norte por cinco noites quando, por fim, depararam-se com o exército real que vinha imponente com cinco mil soldados, trezentos cavaleiros e seiscentos mercenários. O rei estava disposto a despachar o sultão de volta ao deserto do outro lado do estreito, desta vez para nunca mais retornar.
Lorenzo e seus companheiros se uniram ao exército e rumaram para reconquistarem o castelo.
Após três meses de cerco, invadiram a cidadela e passaram ao fio da espada toda a guarda do sultão, que conseguiu escapar no último instante junto a um pequeno grupo de sobreviventes.
Após a vitória, o rei conclamou Lorenzo e seus companheiros para um banquete, afinal, segundo os relatos difundidos por eles mesmos, haviam defendido bravamente o castelo e só o abandonaram quando isto já não era mais possível.
Enquanto celebravam, o rei ergueu o seu cálice e disse.
Ouvi suas histórias de bravura, que seriam cantadas para gerações futuras. Entretanto, sabemos que isto não é verdade. Um dos mouros aprisionado nos relevou tudo que se passou e, por isto, todos vocês morrerão esta noite.
Mais uma vez, Lorenzo, que havia se tornado o porta-voz dos outros, levantou-se e disse.
Para pessoas como nós não existe vitória. Gente como nós sempre perde.
É a ordem do mundo. É a vontade de Deus. Disse o monarca, concordando com o soldado.
Assim, após o banquete, Lorenzo, Juan e todos os demais traidores foram executados.
Do castelo, hoje só restam ruínas. Dizem que Lorenzo foi sepultado perto de uma oliveira defronte à porta oriental e que é uma das muitas almas que atormentam o povoado, mas nisto eu não acredito.
Alicante, outubro de 2017
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Os Últimos
Short StoryEles tinham uma missão impossível. Será que darão a vida por ela?