Capítulo 1 - Da Mãe-Sol e do Pai-Lua (Parte 01)

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Da Mãe-Sol e do Pai-Lua

"Tudo tem uma origem. Uma origem maior, mais profunda e que está na essência das coisas e dos seres. Uma origem inteligente, sábia e cercada de lendas".

Passagem extraída dos Pergaminhos do Conhecimento

Marrom, branco, cinza e azul. Essas eram as cores do mundo no início. Ainda era seco e poeirento, com alguns pontos onde a água se acumulava, mas suas sólidas bases estavam estabelecidas e seus mais altos cumes estavam formados. A junção, através de processos que estão além da compreensão das mentes, dos quatro elementos físicos primordiais, em pequenas e grandes estruturas, deram forma aos mares, montanhas, rios, planaltos e depressões. Logo em seguida efetuou-se uma longa espera para que brotassem as sementes, geradas pela junção dos elementos metafísicos sombra e luz, e trazidas dos céus pelos ventos. Assim, através do "Primeiro Sopro" nasceram as florestas e bosques. Assim surgiu a quinta cor no mundo: o verde. E as pequenas plantas e grandes árvores embelezaram as paisagens.

O local para o surgimento das primeiras plantas e árvores foi escolhido com cuidado. Um território cercado por belas e altas montanhas dava a proteção necessária contra ebulições climáticas que ainda moldavam a superfície. Como que uma imensa tigela rochosa o Grande Vale foi o berço das primeiras formas de vida vegetal. E para celebrar esse momento os Deuses Irmãos vieram pessoalmente ao mundo e tocaram seu solo virgem. Por um longo tempo ficaram, tamanha foi a alegria de ver o resultado da perfeita comunhão entre a água, o ar, a terra e o fogo, os elementos formadores das coisas no plano físico. A Mãe-Sol e o Pai-Lua, irmãos e ao mesmo tempo marido e esposa, por um longo tempo caminharam na superfície da Criança-Mundo e sua presença trouxe a luz e o calor necessários para que o imenso tapete verde e as grandes árvores saíssem da terra e se estendessem pela vastidão do vale acolhedor. Os primeiros habitantes. E grande foi a alegria dos visitantes celestes.

Os deuses irmãos acompanharam o crescimento de cada porção de gramínea, cada árvore frutífera, cada um dos gigantes carvalhos, dos pinheiros, dos olmos, das cerejeiras, das palmeiras, das acácias, dos ipês e das inúmeras plantas que carregavam em sua essência substancias perigosas, necessárias para protegerem sua fragilidade, como também curativas, estimulantes, balsamizantes. Mas nas mentes da Mãe-Sol e do Pai-Lua, que agiam sempre em consonância, a terra não seria apenas herdada aos primeiros habitantes, mas sim, desde sua concepção no pensamento divino, eles teriam uma função primordial: dar suporte, segurança e acolhimento aos segundos habitantes. Aqueles que não nasceriam de dentro do seio da terra, mas sobre ela. E assim como os primeiros, também povoariam de beleza e movimento a superfície do mundo. Desta forma, do "Segundo Sopro" nasceram os animais em variedade. Não demorou muito para que os filhos do primeiro e segundo sopros estabelecessem comunhão entre si, alegrando-se mutuamente. Isso porque desde o início dos tempos a harmonia e o equilíbrio estiveram na mente celeste. E animais e árvores estavam em grande sintonia com esse princípio.

Nessa época perdida no tempo, da qual poucas vozes falaram e nenhuma memória recorda, Mãe-Sol e Pai-Lua se encheram mais uma vez de imensa alegria. E a terra e seus habitantes se alegravam com eles, dançavam com eles, pois sua presença era luz, era calor, era vida, e tudo em volta sentia essa abundancia. Os pássaros nos céus e as inúmeras espécies na terra e nas águas davam seu testemunho, aos pés dos deuses e sobre suas cabeças, da felicidade que pairava sobre os primeiros anos. Tão lindo era o espetáculo que os Deuses Irmãos fizeram dois grandes tronos, um de ouro e outro de prata, e os colocaram no topo de uma montanha. E assim, do alto de Amenawara, o maior de todos os picos, olhos celestes passaram a contemplar o que haviam feito. E se alegraram mais uma vez. E na profusão de sentimentos de felicidade Mãe-Sol convidou Pai-Lua para uma dança de celebração. Neste dia a mais bela dança que algum dia já existiu ou que viria a existir teve início. E seus movimentos foram tão suaves, poderosos e profundos que sob seus pés nasceram as primeiras flores em imensa variedade de cores e perfumes. De suas pegadas nasceram também minúsculos seres que se beneficiariam desse novo mar de cores perfumosas. E da união da terra com as energias divinas vieram ao mundo as abelhas, borboletas, vaga-lumes, escaravelhos. E o Grande Vale se encheu de maior beleza.

Longa foi a dança dos Deuses-Irmãos. E num determinado momento Mãe-Sol se encheu de grande luminosidade e se fez um verdadeiro sol na terra. Até Pai-Lua resolveu se afastar para não se queimar e protegeu os olhos para não ferir a visão. A partir daquele momento apenas acompanhou os movimentos da irmã que se distanciava cada vez mais ao norte do grande vale e era vista como um poderoso ponto luminoso que desbravava as áreas escuras que ainda existiam nos limites da primeira morada e além dele no distante norte gelado. E onde Mãe-Sol passava ou tocava logo em seguida se enchia de vida com novas e belas formas vegetais. Até as rochas das montanhas foram tocadas pela luz fulgurante e também se encheram de beleza pois absorveram focos dessa luz, esfriando-os e transformando-os ao longo dos séculos nos mais variados tipos de cristais. Nem mesmo as frias e silenciosas terras do norte contiveram a alegria fulgurante da Mãe-Sol e por onde passava todo o ambiente reagia ao calor acolhedor e transformador. Assim, formas de vida animal e vegetal puderam habitar o distante norte e se tornaram mais resistentes que seus irmãos do sul pois a luz da Mãe-Sol se tornou mais intensa ali.

Como uma gigante senhora vestida de luz, Mãe-Sol continuou sua dança-caminhada por mais tempo. E assim chegou aos sopés das imensas e poderosas montanhas que serviam de portão para as planícies de gelo eterno. Mas nem mesmo esse imenso paredão de pedra e gelo a impediu de continuar e pouco depois já pisava em terras cobertas pela neve que nunca derretia, a não ser agora por baixo dos seus pés. Caminhando pela planície sem fim por longos dias, finalmente chegou a uma gigante formação rochosa tão alta e poderosa quanto Amenawara, a casa dos dois tronos. Uma verdadeira ilha solitária num mar branco, onde o gelo mais antigo do mundo repousava em meio a escuridão. Mãe-Sol se fez uma estrela fulgurante a escalar as escarpadas paredes que levavam ao topo da grande montanha. E antes que chegasse ao cume encontrou o que procurava e ficou ali parada como que a conversar silenciosamente com a montanha. Logo em seguida tocou com as mãos a camada extensa de gelo e a perfurou com sua intensa luz calorosa. Camadas e mais camadas de gelo foram se abrindo diante de suas mãos até acharem a rocha antiga e intocada por séculos. E por uma entrada de caverna esculpida na face sul da montanha Mãe-Sol adentrou seu interior e começou sua descida por túneis e cavernas naturais, desobstruindo com seu intenso calor séculos e séculos de gelo até chegar ao coração da montanha. Lá chegando encontrou um verdadeiro mar interior escondido e aprisionado em suas entranhas. E logo em seguida falou.

---- Desde o início da formação do mundo fostes confiada a ti a guarda de um tesouro. Um tesouro que se transformará de agora em diante no fio cristalino que sustentará a vida no berço dos nossos primeiros e segundos filhos nascidos e amados, como também será fonte de felicidade e esperança nos corações daqueles que ainda virão mas não serão acompanhados de perto. Por isso te deixarei a missão de ser a provedora dessa seiva, que nascerá aquecida pela minha luz mas será cálida e preciosa para as bocas e raízes que se nutrirem dela. Por esse motivo passará a se chamar pelos tempos dos tempos de Hoonake – A Montanha do Ventre de Fogo – e esse nome será gravado na primeiras mentes.

Depois de sua fala ergueu as mãos para cima e concentrou sua energia em intensas chispas de luz que se acumulavam cada vez mais até formar um imenso globo de luz inapagável e o mergulhou nas águas calmas do mar sob a montanha. Demoraria muito para que toda a água se aquecesse, mas a deusa construiu um trono de pedra e ali aguardou com paciência sua obra se concretizar por completo. Feliz estava e feliz permaneceu mergulhada em pensamentos de passado, presente e futuro. Lágrimas desceram pelo seu rosto. Lágrimas de alegria e tristeza. E no cerne desses pensamentos estavam os Terceiros, aqueles a quem seria dada a herança e a condução dos rumos do novo mundo, a quem seria dado o presente da escolha e da decisão. Mas também traziam consigo incertezas, duvidas e erros, que em sua superfície seriam necessários para o avanço, mas se profundos demais teriam o poder de alterar muitas coisas para pior.

As Cronicas do Grande ValeWhere stories live. Discover now