O trabalho com restauração de obras de arte sempre foi meu verdadeiro dom. Apaixonada pela pintura desde pequena, substitui as visitas de fim de semana a museus com meu pai e passei a pôr a mão na massa ainda na adolescência. Sempre tinha minhas mãos manchadas de tinta e telas espalhadas pelo quanto do quarto. Com o passar dos anos a "pequena artista" Regina se tornou uma universitária e deixou o Brasil em direção a Europa, para cursar uma bolsa de estudo em "Belas Artes".
Dentro da faculdade, aprendi que minha paixão não era criar, e sim conservar aquilo que a humanidade guardava de melhor da história da arte. Concluí a faculdade e fui em busca de um curso de restauro em Madri. De estágios em estágios, de pequenos trabalhos de restauração em tetos de igreja e museus públicos franceses, acabei chegando ao ápice da carreira de um restaurador. O Louvre.
Com um pouco mais que 28 anos, me tornei mais nova integrante do grupo de restauradores do museu do Louvre. No museu d' Orsay, já tinha restaurado obras importantes como Monet e Manet, mas foi no Louvre que tive meu primeiro contato com Da Vinci e suas obras primas. Ao longo da minha carreira, meu trabalho de maior relevância foi "São João Batista" do pintor. Eu fui convidada pelos diretores do Museu por causa do sucesso na remoção, de velhas camadas de verniz que mergulhavam, na penumbra uma das telas de Rembrandt.
Na madrugada de véspera à apresentação final da obra, aos diretores do museu, eu dispensei minha equipe após horas intensas de trabalho. A ansiedade que me preenchia era tanta, que eu não era capaz de deixar o quadro e esperar até a manhã seguinte, então continuei lá na sala de restauros repleta de cavaletes com obras de renome. Estávamos recebendo muitas críticas de especialistas franceses, por restaurar uma obra de Da Vinci. Muitos especulavam que Mona Lisa seria a "próxima vítima" do restauro. Preocupada com as críticas, passei quase uma hora analisando minuciosamente cada detalhe, esperando encontrar qualquer falha nas aplicações novas de verniz.
Depois de quase cinquenta minutos encarando "São João Batista", com seu santo andrógino de meio sorriso, eu compreendi a preocupação de muitos franceses, de que a restauração de um Da Vinci pudesse comprometê-lo. As peças do pintor eram tão únicas, tão bem-acabadas e de um refinamento tão inteligente, que suas obras pareciam ter vida.
De repente, uma música conhecida começou a soar pelos corredores do Museu. Eu mal podia acreditar que uma das músicas brasileiras que eu mais gostava estava entoando pelo auto-falantes do maior museu do mundo. A melodia se tornava mais e mais pulsante a medida que eu me aproximava dos salões principais. Em poucos segundos eu já estava cantando junto com o ritmo o refrão da música de Jorge Vercilo: "Paralisa, com seu olhar , Mona Lisa, seu quase rir ilumina ".
O que eu encontrei no primeiro andar da Ala Denon naquela madrugada me assombra até hoje. Uma mulher de cabelos negros dançava ao som da música, eu me aproximei pronta para acionar a segurança: "senhora, isso é invasão de propriedade, não são permitidos visitantes a essa hora." - Disse. A mulher então se virou, no exato momento, percebendo minha presença.
Só então compreendi de quem se tratava a visitante inusitada, era a mulher retratada por Da Vinci. "La Gioconda". A mulher por trás da história do quadro, Mona Lisa. – "Tudo bem, Regina, eu só estava fazendo uma visita". – A mulher disse e sorriu para mim, ajeitando seu chale preto elegante ao redor dos ombros.
Incapaz de formular uma frase, e perplexa por conhecer a verdadeira Mona Lisa, eu apenas acenei, não em concordância com toda aquela situação inusitada, mas na tentativa de acordar de qualquer sonho maluco que eu estivesse tendo. – "Que falta de educação a minha, querida, que não me apresentei. Sou Lisa Gherardini, esse quadro foi pintado para mim como um presente de meu marido, Francesco del Giocondo. Sabe, ele costumava me chamar de Gioconda, ou de Mona Lisa. '' – em um tom melancólico, a mulher se aproximou e tocou a obra.
– "A senhora não pode tocar a obra" - disse, em um rompante. Me surpreendendo com o volume que minha voz tomou ao ser projetada no salão vazio. Mona Lisa gargalhou com o meu comentário. – "Regina, seu semblante de espanto é ainda mais encantador do que sua ingenuidade. Eu faço isso, todos os anos no meu aniversário de morte, e tenho certeza que Da Vinci não se importaria que eu tocasse em meu próprio quadro. Minha família era grande incentivadora de seu trabalho".
- Como eu posso vê-la, se você está morta há séculos? – Ela me observou em silêncio dessa vez, seus olhos fixos em um ponto atrás de mim. – Só os verdadeiros apreciadores podem enxergar a verdade por trás da arte, eles não podem me ver, poucos podem." – disse. "Eles?" - indaguei e ela apontou para o mesmo ponto atrás de mim.
Seguindo seu olhar, avistei os seguranças do museu se aproximando. Eu me virei para confrontá-la. Mas Mona Lisa não estava mais lá. Os seguranças então me perguntaram se estava tudo bem, e eu respondi que sim. Com a desculpa de estar verificando o estado das obras do pintor, eu me desvencilhei rapidamente das perguntas e voltei para a sala de restauração.
Em 40 anos de carreira, nenhuma outra experiencia com as obras de arte fora tão especial ou tão marcante. Jamais compartilhei a pequena conversa que tive com Mona Lisa, nenhuma pessoa levaria a sério o meu encontro tão particular com a musa inspiradora da obra de arte mais famosa da história. No entanto, foram suas palavras que mudaram para sempre minha forma de enxergar a arte da restauração.
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A verdadeira Mona Lisa
FantasyA história conta a trajetória da mais famosa restauradora de obras de arte brasileira , Regina Moreira . Revelando detalhes da sua experiência em 40 anos de carreira e a verdadeira história por trás do mistério da obra de Leonardo Da Vinci. O famo...