55 pontos de vida

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- Não... não, não. Cadê minha mulher, Meu filho? - Ele empurra o médico e invade a sala de operação. Então seus olhos frenéticos vislumbram a cena trágica: Michele jazida com a cabeça pendida, em seus olhos semi abertos um olhar vazio. Suas roupas de parturiente estavam sujas de sangue, bem como um bisturi sobre uma bandeja e as luvas dos médicos ao redor dela. O monitor cardíaco mostrava uma linha que corria continuamente em linha reta na tela escura, emitindo um "pí" estridente. Reginaldo sabia muito bem o que aquilo significava.

O corpo de médicos presentes trazia uma carregada expressão infeliz em seus rostos. Uma deles, uma médica de bochechas avermelhadas, segurava um bebê miúdo nos braços. Ele não se mexia nem chorava. "Não". Alí mesmo, no hall de entrada, Reginaldo cai de joelhos, prostrado. Um pranto doloroso lhe turvava a visão. "Não." Por um instante o mundo todo parecia estar em silêncio."Por quê?" As palavras ecoavam em sua mente. "Por quê?".

O Dr. Marcos parado na soleira da porta tapava a boca contendo a emoção. Os médicos nunca sabiam como agir em uma situação como aquela. Por mais difícil que fosse, estavam preparados para lidar com a morte, mas nunca com os vivos que ficavam.

- Fizemos o possível, mas ela não resistiu. Muitos fatores incluindo o parto prematuro e a hipertenção cardíaca foram decisivos para a morte fatal. Assim que teve a parada cardíaca, tentamos reanimá-la por diversas vezes mas não obtivemos êxito.- Explica o Dr.- E quando o bebê veio a nascer... bem, ele já estava sem vida.

Sobre os dois punhos serrados, Reginaldo gemia sofregamente.

- Isso não pode estar acontecendo!- brada ele com a voz falhada. O Dr. Marcos repousa a mão sobre seu ombro.

- Ela foi muito forte, resistiu até o último minuto. Quando constatamos que o bebê não respirava, não permitimos que ela o visse morto, pois pretendía-mos comunicá-la na sua presença. Mas infelizmente ela veio à falecer antes, logo após dar a luz... crendo ter parido um filho com vida.

Aquelas palavras serviram apenas para machucar ainda mais Reginaldo. Com dificuldade ele usa suas últimas forças para se levantar. O Dr. o ajuda à se colocar de pé. Cambalenate ele vai até a cama hospitalar onde onde estava Michele. Se debruça sobre o rosto dela e com os dedos trêmulos, ajeita uma mecha de seu cabelo atrás da orelha e fica à observar seu semblante por alguns minutos, como quem esperava que ela desse algum sinal de vida. Mas, inutilmente. Suas lágrimas pingavam sobre a face pálida da garota desfalecida. Ele se inclina um pouco mais, toca sua bochecha e dá um último beijo em seus lábios ainda quentes. Em seguida pega uma de suas mãos pendidas e a segura entre as dele. Seus joelhos fraquejam e ele cai sobre eles.

-Michele... Por que? Por que você se foi sem mim?-as lágrimas rolavam- E quanto a nossa promessa? Você me prometeu que morreríamos juntos!- sua voz soava embargada pelo choro- Lembra... Lembra aquela noite na praça da Sé?... Quando eu disse que minha cicatriz no braço se parecia com aqueles riscos que os presos fazem pra contar os dias na prisão? Você riu. Depois me corrigiu, disse que eram nossos anos de vida juntos, que a gente ia riscando para contar, lembra?... - ele faz uma pausa prolongada. Os soluços mal deixavam-no falar - E eu levei 55 pontos Michele! Você ainda se deu o trabalho de contar... e agora... e agora o que eu faço com esses 52 anos que restaram, sem você?!

Os cinco médicos presentes, tentavam manter a postura, mas seus olhos se negavam a obedecê-los. As lágrimas desciam descontidamente.

- E quanto ao nosso filho? Estávamos tão felizes aguardando pela vinda dele. Você mudou tanto gráças à gravidez, e para melhor. Mas agora... agora até ele se foi...- Seu choro partia o coração de todos presentes. -ele esfrega as mãos nos olhos inchados, levanta-se debilitado e vai de encontro à enfermeira que segurava o bebê sem vida nos braços.

- Posso?- pergunta ele estendendo os braços.

- Claro.- responde a mulher emocionada, entregando-o. Ele o segura desajeitadamente.

- Uma menina... Não sabíamos o sexo ainda. Mas se fosse um garotinha ela queria... queria que se chamasse Laura. Podem colocar esse nome na lápide por ela? Por mim?

- Vamos providenciar que façam isso.- Promete Marcos, o Dr.

Ele acaricia o rostinho dela por alguns minutos, imaginando como tudo seria diferente se ela tivesse sobrevivido. Embora soubesse que não iria criá-la, fantasiou momentos felizes em sua mente, levando-a ao parque, de mãos dadas a ele e Michele e perguntou-se se ela teria as mesmas covinhas que tinha sua mãe ao sorrir. Mas isso ele jamais descobriria. Por fim, Reginaldo dá um beijo na testa ensanguentada de sua filha e a devolve à médica, sentindo um vazio em seus braços. A região de seu peito estava manchada pelo sangue da pequena.

- Posso pedir só mais uma coisa?

- Sim claro. Faremos o que estiver ao nosso alcance.- assegura o Dr.

- Aquele bulquê- ele aponta para o ramo de flores sobre uma mesa perto da cabeçeira, o qual ele havia dado à Michele minutos atrás.- podem pedir que joguem no túmulo dela? Eu não as tinha comprado pra essa finalidade, mas; ela adorava rosas vermelhas. Podem me fazer esse favor, já que não comparecerei no velório?

- Nós o faremos. Pode contar com isso.- promete o médico enxugando uma lágrima.

- Obrigado.

Ele atravessa a porta sem olhar para trás, desolado. Os olhos opacos focados no nada, andando desorientado pelo corredor, como uma alma morta.

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