Quatro Balas

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Já faz mais de 20 dias que não encontro ninguém, estradas vazias, carros abandonados, postos de gasolina e lojas de conveniência saqueados. Nada, nem mesmo um corpo em decomposição para eu lembrar o quanto o ser humano fede, viver vagando sozinho é triste e muitas vezes deprimente, mas nos dias de hoje é a melhor forma de sobreviver, afinal eu não quero correr o risco de me juntar a um bando e descobrir que na verdade eles só queriam garantir a carne no prato nos dias mais difíceis.

Ajeito a mochila nas costas, pego a garrafa de água e bebo um bom gole, meu estomago ronca esperando algo solido para preenche-lo, ainda não é hora, preciso garantir as próximas refeições antes de devorar a última lata de feijão solitária no fundo da mochila.

O sol agora brilha forte no céu, mas o vento frio do outono não me dá o prazer de sentir o seu calor, continuo andando pelo asfalto gasto e esburacado, consigo ver a uns quatrocentos metros à frente uma construção não muito longe da estrada, parece um celeiro ou algum tipo de depósito, não vejo nenhum movimento de pessoas ou veículos então começo meu procedimento padrão, caminho para fora da estrada e sigo entre os pinheiros da lateral até conseguir uma visão completa do edifício usando o velho binóculo, um galpão alto, talvez uns 12 metros de altura, uma corrente com cadeado prendem as duas portas, não vejo marca de trilhas seja de pessoas ou veículos acho que vale a pena arriscar.

Procuro uma árvore alta e fácil de subir e começo minha escalada, quando chego em um ponto bom visualizo novamente o galpão, amarro minha mochila na árvore, pego apenas o básico, confiro a munição na arma, 4 balas, é tudo que eu tenho, mas a faca do meu pai está ali e ela nunca me abandonou, pego também duas chaves universais e então desço e é impossível controlar a aceleração dos batimentos, é sempre assim, nunca me acostumo com a adrenalina, Carlos até tentou me ensinar a me acalmar, mas pra mim isso sempre pareceu impossível.

Nenhuma surpresa durante o caminho, atravesso as árvores, a estrada de asfalto deteriorado, a cerca de arame já enfraquecida pela ferrugem e finalmente a campina de mato alto, chegando mais perto vejo como meus olhos estavam me enganando, o galpão é bem maior de perto, e além da corrente duas tabuas pregadas selam as portas e nesse momento todo cuidado é pouco, caminho pela lateral do prédio procurando alguma outra entrada ou alguma fresta para eu ver o que tem por dentro, mas o lugar parece uma caixa selada, nenhuma abertura, nem mesmo nos fundos, apenas a porta da frente e uma única janela no alto, impossível de alcançar sem uma escada ou algum tipo de equipamento de escalada, então só me resta arriscar. Primeiro forço as tabuas e para minha felicidade não preciso me desgastar muito para tira-las,  então chego no meu desafio, o cadeado, pego uma das chaves no bolso e começo a trabalhar, Carlos tentou me ensinar isso também, mas nunca dominei essa arte, giro a chave para um lado e para o outro e vou tentando todas as posições e técnicas que consigo lembrar até que a chave se parte, amaldiçoou baixinho por alguns segundo enquanto jogo as duas partes da chave no bolso e parto para a segunda tentativa e como sempre o destino só estava me sacaneando e sem me esforçar muito giro a chave e escuto o click, o cadeado se abre, tiro ele e a corrente com cuidado e os coloco no chão, seguro a arma com a mão esquerda e abro uma folha da porta o sol invade o lugar e o vento sopra para dentro daquele espaço que parecia não ver ar fresco a muito tempo.

Do lado de dentro eu percebo que aquele lugar era dividido entre um celeiro e um depósito, do lado esquerdo, cinco baias típicas de celeiro e alguns arreios e ferramentas pendurados, uma escada se projeta ao lado da primeira baia levando a um mezanino, do lado direito prateleiras de madeira tampadas com plástico azul se estendem por quase toda lateral. Deixando apenas espaço para outra escada que dá acesso ao mezanino, nenhum sinal de vida, antes vasculhar melhor a parte de baixo subo a escada para garantir minha segurança, a madeira range com meu peso e eu temo que algum dos degraus quebre, me machucar aqui e agora não seria nada bom, meus poucos material de primeiros socorros estão na mochila. Redobro o cuidado e termino de subir a escada, algumas pilhas de feno, algumas lonas dobradas, um rolo de plástico que pela cor eu imagino ser do mesmo tipo que cobre as prateleiras, lá no fundo eu vejo uma pilha de coisas, mas a iluminação ruim da parte de cima não me permite distinguir o que é, caminho devagar e a cada passo as tabuas rangem e a cada rangido meu estomago revira.

Quando chego ao amontoado de coisas no fundo do mezanino encontro algumas latas de tinta e material de pintura, reviro as coisas e a única que realmente me chama a atenção é um pequeno caderno, dou uma folheada rápida tentando enxergar algo, mas a luz não me ajuda muito, mas acho que se trata de um diário, o enfio no bolso e volto para as escadas, olho cada uma das baias em busca de alguma coisa que possa ser útil, deixando a expectativa para o que se esconde atrás do plástico nas prateleiras, nada além de ferramentas do campo, feno e os restos de um animal que o tempo levou a muito tempo e que agora não passa de um monte de ossos, pelo e couro. Atravesso para o lado direito e retiro o plástico da primeira prateleira, meus olhos brilham ao ver 2 galões de 5 litros de querosene, eu confiro e estão cheios, isso é muito bom, começamos bem, encontro também ali um antigo lampião a querosene, algumas ferramentas menores, parto para a próxima prateleira e mais ferramentas, algumas elétricas, que saudade da eletricidade, de um banho quente, de um rádio, de um celular. Volto a realidade por mais dura que seja e retiro o plástico da próxima prateleira e então encontro o pote de ouro, cerca de 3 fardos de garrafas de agua mineral, 6 latas de feijão, 2 pedaços grandes de carne salgada, uma dúzia de latas sopa, um saco grande de sal e 2 frascos de mel. Comida para quase 1 mês, e agua para pelo menos 15 dias, mas é muita coisa para transportar, preciso pensar em algo, não sei se consigo carregar tudo isso. Puxo o plástico da última prateleira e encontro utensílios domésticos, vão ser uteis também, ter uma panela é algo fundamental, mas ainda preciso pensar em como carregar tudo isso.

Separo tudo que considero útil, os alimentos, a água, o caderninho, uma panela, duas colheres, um copo, um martelo pequeno, um rolo de sisal, os dois galões de querosene e o lampião, separo também alguns pregos, dois pedaços grandes do plástico azul e uma das lonas dobradas do mezanino, empilho tudo próximo a porta, é um volume muito grande para carregar em uma mochila, que falta faz um carro nessas horas, vou precisar improvisar. Observo pela fresta da porta e vejo o sol forte e já próximo do meio dia, preciso acelerar as coisas se quiser sair daqui antes de escurecer, subo no mezanino novamente e pego outra lona e desço, corto um quadrado grande e acomodo toda comida e bebida ali, faço uma trouxa amarrando as pontas, deve estar pesando uns 20 quilos, em outra trouxa coloco o restante das coisas, o peso fico equilibrado, procuro em uma das baias e encontro uma forcado, retiro o cabo e apoio uma trouxa de cada lado, isso com certeza vai acabar com as minhas costas, mas não posso deixar isso para trás, tenho certeza que vou precisar de tudo isso, e quem sabe com sorte eu não encontro outro carro mais pra frente, talvez eu até volte aqui para pegar mais coisas.

Saio do celeiro, passo a corrente e fecho com o cadeado, apesar do peso nas minhas costas incomodar, não consigo esconder a alegria, fazia tempo que não sorria, fazia tempo que não tomava um gole de esperança, desço a campina a passos largos e quando estou a alguns metros da cerca escuto barulho, a realidade me toma de assalto e lembro que nos dias de hoje todo cuidado é pouco, solto minhas trouxas no chão e saco a arma, fico ali agachado tentando escutar novamente, olhando freneticamente para os dois lados da estrada, não vejo nada, mas ainda consigo escutar é uma voz feminina, está longe e parece vir do lado esquerdo, da mesma direção que eu vim, deixo as coisas ali e subo um pouco a campina tentando aumentar meu campo de visão e logo vejo a figura vindo, parece ser uma garota, ela anda de forma engraçada, balançando os braços, conforme se aproxima consigo visualizar melhor seus traços, ela é bem jovem não deve passar dos 25 anos, o jeans sujo e as botas surradas mostra que é uma sobrevivente de verdade e não um patricinha que foi mantida por algum grupo, carrega uma mochila grande, parece pesada, provavelmente está cheia o que mostra que ela é forte, vejo apenas um facão pendurado na mochila, nada de armas na cintura, é visível que sua pele era clara, mas os dias de sol forte do verão já lhe deram um bom bronzeado, e os cabelos curtos, na altura orelha mostra que ela procura ser prática, mas não parece ser do tipo machona, ainda usa brinco nas orelhas e um colar no pescoço, vejo a estampa da camiseta, Nirvana, temos um gosto em comum, o que fazer, respeitar o que Carlos me ensinou ou me arriscar tentando manter uma relação humana depois de tanto tempo.

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⏰ Última atualização: May 07, 2014 ⏰

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