Final

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Numa noite medonha, quando a falta de energia deixou o bairro inteiro um breu, mais ou menos umas duas da manhã, o celular da Sra Peixoto tocou justamente no momento em que um espectro caminhou na direção de seu banheiro. O celular insistia em tocar, e a mulher atendeu, visivelmente aflita. "Alô". Do outro lado da linha, uma voz distante, mas ao mesmo tempo próxima, disse: "Estou aqui". Era uma voz de uma garota, mas com uma mescla de algo que soava sobrenatural, a julgar pelo eco que zunia o forro da casa.

Confusa, e sem saber se era o certo a fazer, tentou ligar para a polícia, mas seu celular não funcionava. Do banheiro, ruídos vinham. Saiu às pressas batendo na porta de Janete, mas esta não atendia. Saiu batendo nas portas dos quartos das crianças mas sem sucesso. "Que pesadelo, meu Deus!", exclamava. Correu então para o térreo da casa e avistou um rosto fitando-a da janela. Naquele instante, todos os aparelhos domésticos foram ligados simultaneamente. Da televisão, se propagava a imagem da própria sra Peixoto sendo degolada por crianças encapuzadas. A menina Fatima liderava. Em seu desespero, tentou em vão desligar a tela, porém as vozes continuavam, e desta vez vindas de todo compartimento da casa. "Estou aqui. Estou aqui. Estou aqui".

Jamila enlouquecia. Num estado de transe, viu a pequena Fátima, da porta da cozinha, com uma faca na mão fatiando o senhor Antônio, tirando tripas, buchos e o coração. "Servida, sra Fátima?" perguntou Fátima com os lábios pintados de sangue. "O que você está fazendo, sua filha da puta!", berrava a sra Peixoto. A mulher correu na direção tirando a faca das mãos da menina.

— Me deixe terminar, sra Jamila. Não se preocupe.

— Meu Deus do céu, Fátima! O que você quer? Você está morta. Sumaaaa, vá pra onde tem que ir! Vá para o inferno sua destruidora de lar.

— Não sem antes você fazer.

— Fazer o que, sua maluca? – berrava Jamila num possesso de ira.

— A senhora sabe muito bem, sra Peixoto. – disse Fátima olhando a faca na mão da mulher.

— O quê? Você quer que eu me mate? É isto?

— Não sou eu quem está dizendo, sra Jamila. A senhora deduziu, e se deduziu é porque pensa em fazer isto.

— Jamais tiraria a minha vida, jamais.

— Acho que foi isto que o senhor Antônio pensou quando armou todo o suicídio. Não teve coragem de fazer.

— O que está dizendo?

— Eu estava por perto. Eu vi tudo, sra Jamila.

— Você matou meu esposo, sua criatura de satanás?

— Na verdade eu só ajudei o senhor Antônio, pessoa que estimava muito, a acabar com seu sofrimento. Não foi uma vingança, foi apenas um favor. Pobre senhor Antônio, noivo de uma esposa promiscua que não vale um centavo.

— Ora sua... – disse sra Peixoto tentando pular em cima da garota.

— Você está louca, sra Jamila? Como quer atingir um fantasma?

— Isto é um sonho. Só pode ser um sonho. – dizia sra Peixoto.

— Eu diria um pesadelo.

— Por que está fazendo isto comigo, menina? Por quê?

— Por quê? Ora, sra Jamila. A senhora me matou.

— Você estava doente, menina! Não a matei.

— Matou sim, sra Jamila. Matou quando me fez sofrer. Quando me humilhava, me batia. A senhora foi me torturando aos poucos. Eu preferia ter a cabeça esmagada por um caminhão do que a morte sofrida que tive. Morri doente, doente de morar com a senhora e sofrer como eu sofri. Meu único remédio era a Joaninha. Fora ela, mais nada. Nada.

— Então me desculpe por tudo. Você me perdoa?

Fátima a olhava com pena, e nada disse.

— Quer saber? Isso não passa de um pesadelo, sua moleca. Quando acordar vou até o seu túmulo e cuspir nele assim como já fiz enquanto te acordava.

— Tudo bem, sra Jamila. Então acorde do seu pesadelo.

A sra Peixoto, desafiada, olhou para a faca ainda nas mãos, e disse:

— Então veja como tudo isto é um pesadelo.

E enfiou a faca no estômago, com toda força, com toda a raiva que sentia. Mas o sangue, para a sua surpresa, parecia real, tão real como a dor insuportável que sentia. Seus olhos reviravam, pensando em estar acordando do sonho. Mas sua voz foi ficando fraca enquanto dizia: "Estou acordando, estou acordando, e...sto...u a...co...r...dan...

Sra Jamila então caiu na poça de sangue. Foi encontrada no dia seguinte por Janete, a faca cravada em seu peito. Tinha a imagem da esposa de satanás na face. 

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