Até quando?

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Numa noite de abril, Lia enfrentava o mesmo problema de sempre: Estava empacada em um de seus tantos projetos. De um lado, boas ideias empunhando lanças em riste; do outro, a parede de escudos erguida pela procrastinação. Uma batalha diária.

Ajeitou os óculos de fundo de garrafa que lhe escorregavam pelo nariz, encarando a tela vibrante do monitor.

"Vamos lá, o segredo é desenvolver as primeiras linhas, e como sempre, o resto deve fluir..."

Pausou a música que tocava no Media Player; a banda Asking Alexandria, a mesma que estampava sua regata surrada, não era a mais indicada para a ocasião. O vento que entrava pela janela era quente, trazendo alívio e incômodo. Os cabelos longos lhe cutucavam o rosto. Prendeu-os num rabo de cavalo torto.

— O CARRO DOS OVOS CHEGOOOOU! — O som alto vinha do carro que passava lá fora, devagar.

"Aaah, vá! Como se eu já não tivesse ouvido."

Tudo era distração. A música, o carro dos ovos, as crianças quase sendo atropeladas na rua. Levantou-se para pensar melhor.

Caminhou de um lado para o outro no quarto, buscando inspiração para continuar o seu romance. O fim do prazo de entrega se aproximava; deixou que os dias, semanas e meses passassem sem apresentar progresso algum em seu trabalho. Não por falta de tempo, mas por ter encontrado atividades que lhe tomavam menos esforço. Atividades mais prazerosas e menos gratificantes.

Estava decidida a terminar naquele mesmo dia o capítulo abandonado. Era um sábado, não tinha aula na manhã seguinte e nada mais para preocupa-la além do domingo tedioso que se aproximava. Já quase podia ouvir a música de encerramento do "Fantástico" anunciando o fim da trégua na guerra rotineira.

"Eu vou sentar a bunda naquela cadeira, e não levanto até ter terminado essa merda...o diabo pode vir me cobrar pessoalmente, se eu não conseguir. "

Um minuto se passou, depois dez, trinta, e Lia continuava em pé fitando a tela do monitor. As linhas já escritas, há tanto esquecidas, chamavam por ela. Imploravam por vida. Aproximou-se da escrivaninha, onde a xícara do café já frio repousava, e ligou seu abajur-caveira antes de apagar a luz do quarto; voltou à escrivaninha e se sentou na cadeira almofadada diante dela.

Acendeu um cigarro.

Olhos na tela, preenchidos pelo brilho parco refletido. O trago demorado aliviava a tensão, mas não resolvia o problema. Outro trago, desta vez curto. O resgate de ideias nunca fora seu forte.

Tec, tec, tec, tec.

Batia as teclas, inserindo uma nova frase; logo, a frase deu lugar a um parágrafo e este, se transformou no resto do capítulo que ela precisava.

Tec, tec, tec, tec.

O quadro em branco, pendurado na parede um pouco acima da escrivaninha.

Tec, tec, tec, tec.

O violão quebrado ao lado do guarda-roupa.

Tec, tec, tec, tec.

A bola de vôlei furada embaixo da cama.

Tec, tec, tec, tec.

Terminou e leu. Depois, apagou tudo.

"Porra, viu! Acho que vou é comer alguma coisa..."

Sentiu o coração diminuir dentro do peito ao tentar calçar os chinelos e perceber que seus pés estavam grudados ao chão. Puxava, puxava e puxava... nada! A estranheza causou-lhe uma vertigem súbita.

Até Quando?Onde histórias criam vida. Descubra agora