Ele correu sem olhar para trás, usando todo o ar de seus pulmões para ganhar mais velocidade, consciente que precisava fugir dos homens de uniforme caqui, se quisesse continuar vivo.Pulou dois, três degraus, descendo as escadas, tateando corrimão abaixo, no mais completo breu. Ouviu um barulho alto e agudo ao longe, na mesma direção do feixe de luz. Uma voz feminina anunciava de forma mecânica e entediada, por caixas escuras espalhadas em todo canto, "Por favor, mantenha-se afastado enquanto as portas se fecham."
O barulho se intensifica, agora ensurdecedor, martelando na sua cabeça já confusa, que mal se recuperou dos socos e pancadas de há pouco. Por um momento ele pensa em desistir, parar, deitar no chão em posição fetal, esperar a dor ir embora, e ser capturado novamente. Mas se entregar a quem quer que seja, de bandeja seria um capricho, um gesto covarde que ele não se permitiria. Ele não compreende, nem sabe ao certo como chegou a tal conclusão, mas a força que o move prevalece à sua dor, é mais forte mesmo que as suas vontades, fraquezas, que ele próprio. Sabe que por ela não se permite desistir. Ele prende a respiração na tentativa de esquece-la, de sobrepor essa dor que o tortura, e focar em continuar correndo, porque a sua vida depende disso.
Olha para os lados, fim da linha. Embarcar é a sua única chance. Mesmo sem fazer ideia do destino do trem.
O barulho continua, a porta comeca a fechar.
Ele percebe que talvez não consiga passar por ela a tempo e se desespera. Solta um grito angustiado, parece tirar forças de onde não imaginava possuir, e num impulso se joga para dentro do vagão, a porta rasgando parte da sua manga.
Assiste os homens correndo lá fora, olhando, incrédulos, enquanto ele se afasta lentamente da estação.
Olha ao redor e percebe estar sozinho. Com a adrenalina ainda correndo nas veias e atento a todo movimento ao seu redor, caminha ofegante a esmo. As luzes da composição piscam incessantes, na sua frente, atrás dele, refletindo no túnel do lado de fora. Ele se segura com os trancos que vez ou outra o fazem perder o equilíbrio.
"Você está atrasado..." Ela fala saindo das sombras, caminhando em sua direção.
Ele se assusta, ainda processando toda a confusão, sua dor de cabeça, a fuga, o barulho do salto da bota preta de cano alto dela no chão de aço, o chiado dos trilhos em atrito com o trem, as vozes que saem das caixas finas espalhadas pelas paredes, que parecem combinadas, reproduzindo ao mesmo tempo pessoas sorrindo, correndo, bebendo um líquido de cor escura, repetindo, piscando, em letras garrafais, "Coke".
Ela se aproxima lentamente. Seus olhos escuros fixos nele, não piscam uma única vez, ela parece extremamente atenta a ele, aos seus movimentos, antecipando cada passo, seguindo os seus olhares.
"Quem é você? Por que eles estão me seguindo? O que vocês querem comigo?"
Ela vira a cabeça para a direita, como que tentando entender o que ele acabou de perguntar. Seu cabelo loiro platinado muito curto, se confunde com a cor da sua pele, seus olhos estudam sua expressão. "Calma." Ela sussurra, tentando toca-lo, "Eu estou do seu lado! Você não lembra de mim?"
"Eu não sei de mais nada, em quem devo ou não confiar! Nem faço ideia do que esteja acontecendo! Uns loucos estão tentando me matar!" Ele fala de uma vez, sem respirar, caminhando pra trás, se afastando dela.
"Você está hiperventilando, 'Gambler'..."
"Por que você insiste em me chamar assim? Por acaso é um algum tipo de piada? Um apelido? O meu nome é Scott!"
"Mas todos te chamam de 'Gambler'." Ela sorri, virando os olhos como se ele tivesse falado uma bobagem qualquer, "Tanto faz! Você pode se chamar, usar o nome que quiser, 'Ele' me chama de 'Copas', vai entender... Nada disso importa. Pra mim, pra 'Ele', para todos nós, você é apenas mais um no tabuleiro...", ela dá outro passo e agarra ele pelo colarinho, encostando o seu rosto fino e de traços perfeitos perto do dele, "... que se não confiar, e vier comigo agora, vai acabar novamente nas mãos dos 'Outros'."
"Quem são esses 'Outros'? Toda vez que você, que eles aparecem algo ruim acontece comigo!" Agora é ele que a segura firme pelo punho, a pele gelada dela parece derreter com o toque da sua mão quente, "E eu não dou mais um passo sem que você me diga o que está acontecendo. Quem afinal é você? Quem é esse tal todo-poderoso que você chama de 'Ele'? Por que ele te mandou para me ajudar?"
"Eu explico assim que a gente sair daqui."
O teto se rompe. Um homem vestindo cáqui pula dentro do vagão. Uma montanha de músculos, alto, forte, caminha direto na direção dos dois. Ele o segura pelo ombro com uma força brutal que o faz gritar de dor. Ele tropeça e cai, mas mesmo assim seu algoz continua o ataque, arrastando-o para a porta mais próxima. Ela é rápida, e acerta um chute no gigante que o leva ao chão.
"Corre, 'Gambler'!!"
Mas ele não se move, e assiste perplexo o embate corporal entre os dois. A loira platinada tenta um segundo golpe, mas o 'Outro' parece se recuperar imediatamente do chute, e investe nela mais uma vez, que dá um soco certeiro nele. Seu rosto permanece sem expressão, o que faz ele parecer como um robô, não fosse pelo sangue agora que jorra de seu nariz. Ouvem-se vários passos vindo do teto, se deslocando na direção deles.
"Fim de conversa, precisamos sair daqui! Rápido..." Ela não termina a frase quando é surpreendida novamente pelo homem, agora com o rosto e camisa completamente manchados de vermelho. Ele a levanta pelo pescoço facilmente com apenas uma mão, e quebra uma janela com um soco. Uma chuva de pequenos pedaços de vidro os atingem, se espalhando por todo o vagão. Ela se contorce, tentando se livrar das garras gigantes, que a mantem suspensa no ar.
Mesmo com a dor lancinante no ombro e tentando se equilibrar, ele tenta se levantar, quando assiste com horror ela sendo jogada pra fora da janela.
Seus olhos escuros encontram os dele por um último momento. Calmos e serenos, mesmo na iminência da morte.
Acordo suando, ofegante, com a lembrança do sonho viva, têmpora pulsando. Tudo parecia tão real! Mantenho a cabeça entre as mãos. Meu quarto gira. Com a visão turva, me estico para alcançar os óculos ao meu lado. A janela está aberta. O vento agita uma pilha de papel num canto, contida por uma pedra que faz as vezes de peso. E então vejo ela de pé, encostada no batente da porta, cabelos escuros e longos presos em um coque bagunçado, cigarro nos dedos, me olhando desconfiada.
"Você tá pálido! Tá tudo bem?"
"Sim... Foi só um sonho estranho."
"O mesmo?"
Balanço a cabeça negativamente, "Acho que estou ficando louco."
"E o meu maluco preferido vai tomar café comigo ou vai continuar na cama?" Ela caminha em minha direção como uma leoa, mordendo os lábios, me olhando como se eu fosse um antílope na Savana Africana, suas mãos subindo pelas minhas pernas, me provocando.
"Charlotte, eu preciso de alguns minutos, se você me der licença."
Ela fica séria e sai, batendo a porta demasiado forte.
Minhas roupas estão no chão. Visto as mesmas de ontem. Passo os suspensórios pelos ombros, um deles sensível ao meu toque.
Sobre a escrivaninha, leio a manchete do "The New York Times" de ontem, vinte e dois de agosto de mil novecentos e vinte. E a vejo ao lado, em contraste com as folhas amareladas do jornal, clara e brilhante, manchada de sangue, rasgada em um dos cantos.
Caio de joelhos no chão. Sem entender como é possível, ainda segurando com as mãos trêmulas, uma carta de dama de copas.
