As noites de insônia de Nezumi eventualmente se tornaram o sepulcro apropriado para sua pouca estabilidade, agora, ainda mais abalada pela presença de Shion.
Bastava que aquele garoto de sono tão pesado e despreocupado estivesse ali, ao seu lado, dormindo em paz com a noite para que, como se cativo por alguma mágica, Nezumi não soubesse mais como fechar os olhos ou como se deixar beijar pelo sono até que a infinidade da madrugada se acabasse juntamente à ansiedade consigo carregada.
Ficar acordado era tão angustiante que ele poderia chorar.
Quando olhava para Shion, uma parte de si implorava para que ele acordasse; para que, como quem conforta uma criança com medo do escuro, ele segurasse sua mão e dissesse com a voz gentil de sempre:
"Vamos dormir, Nezumi. A manhã ainda vai chegar..."
Mesmo que fosse idealismo barato, Nezumi queria ouvir dele que a manhã chegaria – que, quando o sol nascesse, ele abriria os olhos e encontraria um céu azul o esperando além dos muros de N° 6. Talvez, amanhã, nem haja mais muros, como sonhava o garoto ao seu lado.
Será que, agora mesmo, o rapaz de cabelos claros estava tendo algum sonho de final feliz como esse? Uma realidade onírica onde ele poderia viver em paz com a mãe e com Safu..., mas se Nezumi mal podia desvendar os segredos por trás dos sorrisos de Shion, quem dirá desvendar suas utopias invisíveis. Apenas sabia através da maneira leve como ele respirava – através do som baixinho que escapava dos lábios entreabertos dele – que Shion dormia bem; imperturbavelmente bem.
Nezumi poderia admirar para sempre a expressão plena que o outro rapaz fazia enquanto dormia, contudo, acompanhar os movimentos respiratórios de Shion – o modo como o peito dele subia devagarzinho e esvaziava-se em suspiros soprados ao pé de seu ouvido – não dissiparia insônia alguma; pelo contrário, o fitar apenas perpetuava a longevidade daquela noite.
Ciente disso, ele levantou-se devagar, com cuidado para não interromper os sonhos de quem ainda era capaz de sonhar. A cama o respondeu com um rangido familiar quando ele se afastou, andando sem dificuldades pelo quarto que, como um céu cujas estrelas cansaram-se de brilhar, estava tomado pela mesma escuridão remanescente do lado de trás das pálpebras.
Mesmo assim Nezumi conseguia ver. Estava acostumado.
Se aproximando das estantes que se erguiam até quase alcançar o teto, ele tateou livro por livro, sentindo as capas de couro velho com dedos de quem toca o amor. Ele pensou que seria melhor ler; se deixar submergir em "A Tempestade" e revisar suas falas para a próxima grande estreia de Eve.
Inevitavelmente Nezumi se perguntava se sua vida acabaria se tornando uma tragédia também. Seria muito irônico se seus medos se concretizassem semelhantes aos devaneios de Shakespeare; ou talvez já houvessem se concretizado – talvez sua insônia fosse a prova disso.
Inquieto, tratou de sair dali; de se afastar do cômodo onde Shion estava o mais rápido possível e organizar a bagunça que seus sentimentos por tanto tempo escondidos haviam se tornado.
Um livro antigo apertado contra o peito e um lampião apagado pendendo em seus dedos – assim, ele deixou a toca para sentar-se entre as ruínas amaldiçoadas do distrito oeste, tomadas pela escuridão íntima das criaturas noturnas, até que a pequena chama alaranjada do lampião se acendesse e trepidasse pela noite; uma luz tão frágil que poderia desaparecer a qualquer instante.
Assim, luz o suficiente apenas para que as letrinhas marcadas nas páginas amareladas daquele livro se tornassem visíveis, Nezumi leu e leu pelo que achou ser horas adentro da madrugada. Quanto mais olhava para o céu noturno entre suas demoradas trocas de página, contudo, mais noite parecia ser. Era como se ali, sentado com aquele livro pesado sobre o colo, ele estivesse apenas se enfiando mais nas entranhas intermináveis da noite, sendo digerido por elas.
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quando as estrelas de sexta magnitude podem ser vistas
Short StoryAs estrelas que começaram a aparecer no céu não eram marcantes como Antares, delicadas como Spica, muito menos exuberantes como o Sol. De tão apagadas e distantes pareciam mais com grãos de poeira perdidos no universo. Não havia nada de especial ne...