A lua em fim alcançou o topo do céu estrelado. O vento soprava forte causando assobios assombrosos em meio as árvores. Contemplando essa noite, um evento ritualístico se iniciava na tribo Afrat.
Circularmente, tambores e tochas formavam um ringue em área de barro vermelho. Envolvendo o ringue, todos os aldeões presenciavam o evento. Alguns em cima de torres de madeira, outros em árvores mais afastadas e, os mais calorosos, compondo a circunferência.
O tambores começaram a imitar o ritmo do coração calmo, prendendo a atenção das pessoas para a entrada do grande ringue. Um longo corredor humano era formado ligando a arena até a entrada da cabana do chefe da vila. Por lá passariam os guerreiros que seriam postos a prova.
O bater dos tambores começa a adotar um ritmo cada vez mais agitado envolvendo e guiando os corações de quem escutava. A primeira dupla surge. Correm pelo corredor juntos realizando saltos incríveis até alcançar o círculo onde simulam uma luta acrobática demonstrando toda a agilidade e desenvoltura que possuíam, finalizando juntos de mãos dadas e erguidas. As pessoas vibravam com animação da dupla.
O ritmo transita da agitação para batidas mais impactantes anunciando o segundo casal que estava entrando. O homem e a mulher imitavam animais enquanto andavam pelo corredor. Ele batia nos peitos imitando os grandes gorilas enquanto ela engatinhava ferozmente imitando os tigres. Ao chegar no centro, ambos começam a realizar movimentos de grande força e dominância onde o gorila tentava imobilizar o tigre que escapava de seus braços e em seguida era arremessado pela força do gorila, mas sempre caindo de pé e vigorosamente. Finalizaram a apresentação assim como o primeiro casal.
Os tambores começavam a mudança novamente. As batidas agora eram calmas, mas inexplicavelmente trazia nervosismo, mistério e até mesmo um pouco de medo do que estava por vir. Desta vez não foi um casal, e sim um homem só. Andava a passos lentos e pesados. Toda a gritaria cessou e deixou apenas o som dos tambores guiarem o momento. Ao alcançar o centro do círculo, de olhos fechados, o homem começou a dançar demostrando domínio físico e espiritual. As chamas das tochas emprestaram parte do fogo para compor os giros e saltos que ele realizava. Com a união do fogo, os movimentos, antes duros e fortes, se tornavam leves e ágeis. Por fim guiando o o fogo socou o chão espalhando as chamas e devolvendo-as para as tochas. Permaneceu algum tempo de punho cerrado contra o chão e cabeça baixa. O som dos tambores pararam, dispensando o homem. Ninguém falou nada, ninguém comemorou, apenas o vento assobiava.
Todos os guerreiros em suas posições aguardando a última entrada. Um casal de velhos andou normalmente até o centro, cumprimentou a todos com acenos e apertos de mãos. Eram os líderes atuais. Após a simples entrada o homem ergueu a mão pedindo silêncio e iniciou seu discurso.
- Como todos já sabemos, está é a noite mais que um simples evento de luta entre os jovens. É nesta noite será decidido, através dos esforços deles, quem irá liderar está década e futuramente, dependendo do destino, terão o direito de tomar as rédeas da vila. Mas ainda há muito pela frente, pois, apesar da idade, vocês sabem que tenho saúde de ferro e não pretendo largar essa vida tão cedo. - brincou enquanto passava a palavra para a mulher ao seu lado.
- Sob a benção dessa lua, esses jovens terão seus destinos definidos esta noite. Essa década, infelizmente, poucos jovens irão competir, mas os que vão, como já viram, possuem grande potencial. Independente dos números, tudo acontecerá como sempre. Então, desejo a todos uma boa apreciação das lutas, e aos guerreiros... que vença o melhor.
Os anciões se afastaram do centro dando espaço para a luta começar.
Apresentaram-se para a primeira luta os únicos dois casais completos. Ambas as duplas se encaravam ferozmente, aguardando o tambor anunciar o início da luta.
Ao soar da primeira batida o primeiro casal, o mais ágil, iniciou a sequência de golpes. Era bonito de se assistir devido a grande quantidade de acrobacias, mas o segundo casal parecia não sentir nem um pouco de dor. Revidando, o segundo casal realiza seus golpes brutos e diretos, mas também falham. A dupla A era ágil, mas era muito fraca. A dupla B era muito forte, mas nem se quer acertavam os golpes. A luta se tornou uma batalha de cansaço e findou com um deslize de pés da mulher da dupla A. A tigresa não hesitou e no momento que viu a abertura da inimiga, desferiu um golpe certeiro no rosto da mesma, arremessado-a longe. O homem da dupla A se distraiu com o golpe recebido pela parceira e nisso foi agarrado pelo gorila, que por sua vez iniciou um esmagamento do inimigo contra seu peito em um abraço mortal. O casal A não suportou a superioridade do inimigo que os derrotaram em apenas um golpe e se renderam.
Com o casal B campeão, houve uma pausa momentânea para os guerreiros, antes de uma nova batalha. O perdedor da primeira luta, enfrentaria o terceiro competidor. Dois contra um. Parece injusto para o solitário, mas a batalha provou o contrário. Sozinho, ele não tinha preocupação com parceiro algum e, apesar da vantagem numérica ser do adversário, estavam estava debilitados da última luta. Não durou muito. A vitória se deu com a queda da dupla.
Chegado a hora da última luta. A dupla de grandalhões, contra o guerreiro solitário. Após várias trocas de socos e chutes, caiu a mulher, restando apenas o Gorila da dupla. Ambos cansados, apesar da diferença de músculos ser discrepante, o homem lidava de igual pra igual com o brutamontes. Eles sabiam que a batalha entre eles acabaria em empate, mas o Gorila, esperto, não se deixaria passar por tal humilhação. Em um soco de peso, o Gorila se aproximou ao ouvido do homem cansado.
- Onde está a sua irmã, Ícaro!? Por que ela não lhe faz companhia quando mais precisa?
- O ringue não é lugar pra conversa, Monte. - forçou o recuo do adversário que retornou com o mesmo golpe.
- Que, pena... - ironizou - ela era realmente forte... ouvi umas histórias sobre ela... as notícias voam na vila, sabia?
- Não interessa. - empurrou o Monte e contra-atacou.
O Gorila agarrou o punho de Ícaro.
- Vamos lá, Ícaro, o que aconteceu com sua querida irmãzinha? - provocou.
- Não é da sua conta. - soltou-se.
Ao ver Ícaro recuar, Monte avançou com mais um golpe simples apenas para se aproximar.
- Deve estar se sentindo um lixo, não é ?!
- Não é da sua conta, Monte! - revidou com sequência diretas de soco, forçando o falador a recuar.
- Calma, não perca o controle, Fagulha... Se algo der errado, ela não vai estar aqui pra lhe acobertar, não é? Filho rebelde...
Ao escutar as últimas palavras do Gorila, enfureceu-se e caiu na armadilha feita pelo Monte. Atraiu as chamas das tochas para o punho e iniciou um golpe fatal. Em mesmo instante os anciões intervieram empurrando Monte para trás e desviando o punho de Ícaro para o céu. Um imenso tornado de fogo se fez e dissipou no céu. A multidão parou as torcidas ao perceber o que aconteceria se Ícaro o atingisse.
O uso de magia era proibido na competição, assim como assassinatos. Os competidores devem fazer com que seus adversários fiquem debilitados ao ponto de não conseguirem revidar ou desistam da luta. Se Ícaro tivesse atingido Monte, provavelmente teria o matado. O ancião conhecia a história de Ícaro e havia percebido o truque sujo de Monte, mas nada proibia provocações ao adversário, por mais que não quisessem, Ícaro deveria ser desclassificado. Os anciões se aproximaram de Monte e sua parceira Tessália.
- Seguindo as regras da competição, Ícaro, o filho do sol, foi desclassificado. A vitória vai para as feras da noite. - Declarou, o ancião, erguendo a mão de Monte.
- Parabéns, Gorila e Tigresa! Vocês provaram sua força nesta noite e são os abençoados da lua. A próxima geração será orgulhosa e seguirão seus passos virtuosamente. Vários desafios estão por vir, mas uma coisa de cada vez. Preparamos uma comemoração especial para esta noite... - Discursava, a anciã.
Ícaro foi embora pelo corredor ao som de vaias enquanto a anciã fazia seu discurso. Se afastando de toda a multidão, de cabeça baixa, deixou a vila e foi para a beira do abismo. Seu lugar predileto. Longe das algazarras da vila, longe dos problemas, longe de tudo. O único lugar onde podia escutar o som dos grilos e sentir o vento com pureza.