vida de casado não era como eu imaginava.
Não me entenda mal: não me arrependia de ter casado com Sydney. Na verdade, a
amava mais do que imaginava ser possível amar alguém. Mas o modo como estávamos
vivendo… Bom, vamos apenas dizer que também nunca tinha imaginado nada do tipo.
Em todas as nossas antigas fantasias, tínhamos sonhado com lugares exóticos e, acima de
tudo, com a liberdade. Ficar confinado num pequeno flat nunca tinha sido um dos
nossos planos de fuga, nem mesmo de uma escapada romântica.
Mas nunca fui do tipo que foge dos desafios.
— O que é isso? — Sydney perguntou, surpresa.
— Feliz aniversário de casamento — respondi.
Ela tinha acabado de tomar banho e se vestir, e estava parada na porta do banheiro,
admirando a transformação que eu tinha feito no nosso quarto. Não tinha sido fácil
arrumar tanta coisa em tão pouco tempo. Sydney era uma pessoa rápida e eficiente, o que
também se aplicava a seus banhos. Se fosse ao contrário, daria tempo de demolir e refazer
o quarto inteiro enquanto eu estava no chuveiro. No caso de Sydney, mal tive tempo de
decorar o lugar com velas e flores. Mas consegui.
Um leve sorriso apareceu em seu rosto.
— Faz só um mês.
— Ei, como assim “só”? — adverti. — É muita coisa. E fique sabendo que planejo
comemorar todos os meses pelo resto das nossas vidas.
Seu sorriso foi de orelha a orelha enquanto ela passava os dedos pelas pétalas das
flores em um vaso. Senti uma dor no coração. Não conseguia lembrar a última vez em que
a vira com um sorriso tão sincero.
— Você até comprou peônias — ela disse. — Onde encontrou?
— Tenho meus meios — falei, com grandiosidade.
Embora seja melhor que ela não saiba quais meios são esses, avisou uma voz na minha
cabeça.
Sydney deu uma volta pelo quarto e avaliou o resto da minha obra de arte, que
incluía uma garrafa de vinho tinto e uma caixa de trufas de chocolate sobre a mesa
meticulosamente posta na cozinha.
— Não está um pouco cedo? — ela brincou.
— Depende para quem você está perguntando — respondi, indicando a janela
escura com a cabeça. — Pra você, já é tecnicamente noite.
Seu sorriso diminuiu um pouco.
— Sinceramente, nos últimos tempos nunca sei que horas são.
Essa vida está fazendo mal pra Sydney, avisou minha voz interior. Olha só pra ela.
Mesmo sob a luz oscilante das velas, dava para ver os sinais do estresse que Sydney
vinha passando. Olheiras escuras. Uma aparência exausta, mais por falta de esperança do
que por cansaço. Ela era a única humana na Corte Moroi sem a missão de nos fornecer
sangue. Ela também era a única humana em qualquer ambiente Moroi civilizado casada
com um de nós. Com isso, despertou a fúria de seu próprio povo e foi isolada dos
amigos e parentes (pelo menos dos que ainda falavam com ela), que estavam fora da
Corte. E, graças ao desprezo e aos olhares curiosos que recebíamos, Sydney se isolara
quase que completamente das pessoas dali também, reduzindo seu mundo ao nosso flat.
— E não é só isso — eu disse rápido, tentando distraí-la. Apertei um botão e uma
música clássica começou a tocar no sistema de som. Ofereci a mão para ela. — Já que
não tivemos a chance de dançar no nosso casamento.
Isso fez seu sorriso voltar. Ela segurou minha mão e deixou que eu a puxasse para
perto. Giramos pela sala, tomando cuidado para não derrubar nenhuma das velas. Sydney
me encarou, rindo.
— O que você está fazendo? É uma valsa. Tem três batidas. Não está ouvindo? Um,
dois, três… um, dois, três…
— Jura? Isso é uma valsa? Hum, escolhi qualquer coisa que parecesse chique. Já
que não temos uma música nossa nem nada. — Refleti sobre isso por um segundo. —
Acho que a gente falhou como casal nesse sentido.
Ela zombou:
— Se essa é nossa maior falha, então acho que estamos bem.
Dançamos pela sala por mais um tempo até eu dizer de repente:
— “She Blinded Me with Science”.
— Quê? — Sydney perguntou.
— Pode ser a nossa música.
Ela riu e percebi que fazia muito tempo que eu não ouvia o som de sua risada. Fez
meu coração doer e bater mais forte ao mesmo tempo.
— Bom, acho que é melhor do que “Tainted Love” — ela respondeu.
Nós dois demos risada e ela encostou o rosto no meu. Dei um beijo no seu cabelo
dourado, sentindo o perfume do sabonete na sua pele.
— Parece errado — ela murmurou. — Ficar feliz, quero dizer. Enquanto Jill está
lá fora…
Ao ouvir esse nome, meu coração se apertou e uma grande escuridão ameaçou
tomar conta de mim e destruir esse pequeno momento de alegria que eu havia criado. Estava me obrigando a afastar a tristeza, me forçando a recuar da beira de um precipício
perigoso tão familiar nos últimos tempos.
— Vamos encontrá-la — sussurrei, abraçando Sydney mais forte. — Onde quer
que ela esteja, vamos encontrá-la.
Se ainda estiver viva, disse aquela voz interior maldosa.
A voz que ficava falando na minha cabeça não era parte de um exercício mental. Era,
na verdade, uma voz bem específica: a da minha falecida tia Tatiana, ex-rainha dos Moroi.
Mas ela não aparecia para mim como um fantasma. Sua voz era uma ilusão criada pela
insanidade que cada vez mais tomava conta de mim, graças ao raro tipo de magia que eu
usava. Um simples remédio poderia calar a boca dela, mas também tiraria minha magia e,
naquele momento, nossa vida estava imprevisível demais para isso. Então, eu e a voz de tia
Tatiana passamos a conversar na minha mente. Às vezes, essa presença ilusória me
aterrorizava, e eu me perguntava quanto tempo levaria até enlouquecer de vez. Às vezes eu
levava na boa, e a ideia de que estava passando a ver isso como normal me assustava ainda
mais.
Consegui ignorar minha tia quando voltei a beijar Sydney.
— Vamos encontrar Jill — eu disse, mais firme. — Enquanto isso, precisamos
continuar levando a vida.
— Acho que sim — Sydney disse com um suspiro. Dava para ver que ela estava
tentando recuperar o ânimo de antes. — Se é para compensar o fato de a gente não ter
dançado no casamento, sinto que estou pouco vestida para isso. Talvez devesse procurar
o vestido.
— De jeito nenhum — respondi. — Não que aquele vestido não fosse lindo. Mas
gosto de você com pouca roupa. Na verdade, preferiria até que você estivesse menos
vestida ainda…
Parei de valsar (ou qualquer que fosse o passo de dança que estava tentando fazer) e
levei minha boca à dela num beijo muito diferente do que tinha dado havia pouco. Meu
corpo se encheu de calor enquanto eu sentia a suavidade do seu lábio e fiquei surpreso ao
perceber que ela correspondia minha paixão. Diante dos últimos acontecimentos, Sydney
não se sentia muito no clima, o que era compreensível. Eu tinha respeitado seus desejos e
mantido distância, sem me dar conta até o momento do quanto sentia falta dessa chama
nela.
Deitamos no sofá, agarrados um no outro e nos beijando com vontade. Parei para
observá-la, admirando como a luz das velas iluminava seu cabelo loiro e seus olhos
castanhos. Poderia me afundar naquela beleza e no amor que irradiava dela. Era o
momento perfeito e romântico de que a gente tanto precisava… pelo menos, até alguém
abrir a porta.
— Mãe? — exclamei, saindo de cima de Sydney como se fosse um adolescente, e
não um homem casado de vinte e dois anos.
— Ah, oi, querido — disse minha mãe, entrando na sala. — Por que todas as
luzes estão apagadas? Parece um mausoléu aqui. Acabou a energia? — Ela apertou o
interruptor, fazendo Sydney e eu estreitarmos os olhos. — Parece que já voltou. Mas
vocês não deviam ter acendido tantas velas. É perigoso. — Para ajudar, ela apagou
algumas.
— Obrigada — Sydney disse, inexpressiva. — É bom saber que você se preocupa
com a nossa segurança. — A cara dela me lembrou da vez em que, “para ajudar”, minhamãe tinha arrancado um monte de bilhetinhos “amontoados” em um livro. Sydney tinha
passado horas anotando cada um deles com cuidado.
— Mãe, achei que você ficaria fora mais tempo — disse, jogando uma indireta.
— Queria ficar, mas estava muito constrangedor no salão de fornecedores. Pensei
que todos estariam ocupados na reunião do conselho, mas não. Todo mundo ficou me
encarando. Não consegui relaxar. Então me deixaram trazer um pra casa. — Ela observou
ao redor. — Aonde ele foi? Ah, ali. — Ela voltou para o corredor e trouxe um humano
um pouco mais velho do que eu com o olhar perdido. — Senta ali naquela cadeira que já
cuido de você.
Levantei em um pulo.
— Você trouxe um fornecedor pra cá? Mãe, você sabe como Sydney se sente em
relação a isso.
Sydney não disse nada, mas ficou pálida ao ver o humano sentado do outro lado da
sala. Os olhos dele encaravam o nada, perdidos e alegres pelas doses de endorfina que
recebia ao deixar os vampiros se alimentarem dele.
Minha mãe suspirou, irritada.
— Você esperava que eu fizesse o quê, querido? Jamais conseguiria me alimentar
com Maureen Tarus e Gladys Dashkov cochichando bem ao meu lado.
— Esperava que você tivesse um pouquinho de consideração pela minha esposa! —
exclamei. Desde que Sydney e eu havíamos nos casado e buscado refúgio na Corte, a
maioria das pessoas (incluindo meu próprio pai) tinha dado as costas para nós. Minha
mãe ficara ao nosso lado, e foi até morar conosco, o que, entretanto, tinha lá suas
complicações.
— Tenho certeza que ela pode esperar no quarto — minha mãe disse, abaixando-
se para apagar outras velas. Quando viu as trufas na mesa, pegou uma e colocou na boca.
— Sydney não tem que se esconder na própria casa — argumentei.
— Bom, eu também não. A casa também é minha — minha mãe argumentou.
— Não me importo — Sydney disse ao levantar. — Eu espero.
Fiquei tão frustrado que minha vontade era arrancar os cabelos. A paixão não era
mais o problema. Todos os traços da felicidade que tinha visto em Sydney desapareceram.
Ela estava voltando a se refugiar em si mesma, na falta de esperança por ser uma humana
presa num mundo de vampiros. Então, por incrível que pareça, as coisas ficaram piores.
Minha mãe notou um dos vasos de peônia.
— Que lindas! — exclamou. — Melinda deve ter ficado muito agradecida por
aquela cura.
Sydney parou no meio do passo.
— Que cura?
— Não importa — eu disse, torcendo para que minha mãe sacasse a indireta. Em
outros momentos, Daniella Ivashkov era uma mulher extremamente astuta. Naquela hora,
porém, estava completamente distraída.
— Melinda Rowe, a florista da Corte — explicou minha mãe. — Adrian e eu
encontramos com ela por acaso no último fornecimento. Ela estava com uma crise de
acne terrível e Adrian fez a gentileza de acelerar a cura. Ela prometeu que daria um jeito de
arranjar peônias para recompensar.
Sydney me encarou furiosa. Precisava acalmar a situação imediatamente, então a
tomei pelo braço e a levei para nosso quarto.
— Vê se acaba logo — gritei para minha mãe antes de fechar a porta.
Sydney me atacou na hora:
— Adrian, como você pôde? Você prometeu! Prometeu que não usaria mais o
espírito a menos que fosse para ajudar a encontrar Jill!
— Não foi nada — insisti. — Mal precisou de magia.
— Mas é acumulativo! — Sydney gritou. — Você sabe disso. Qualquer coisinha.
Não pode ficar desperdiçando em coisas assim… nas espinhas de alguém!
Mesmo entendendo por que ela estava nervosa, não pude evitar me magoar um
pouco.
— Fiz isso por nós, pelo nosso aniversário. Pensei que você fosse gostar.
— O que eu quero é que meu marido continue são — ela retrucou.
— Bom, quanto a isso, é melhor desistir — respondi.
Ela não sabe da missa a metade, comentou tia Tatiana.
Sydney cruzou os braços.
— Está vendo? Lá vai você, fazendo piada com tudo. Isso é sério, Adrian.
— E estou falando sério. Sei o quanto consigo aguentar.
Ela me encarou.
— Sabe mesmo? Ainda acho que seria melhor você largar o espírito por completo,
voltar para os remédios. É o jeito mais seguro.
— Mas e quanto a Jill? — a lembrei. — E se a gente precisar da magia do espírito
para encontrá-la?
Sydney desviou o olhar.
— Bom, até agora não ajudou muito. Nem a sua magia nem a de ninguém.
A última frase foi uma crítica tanto a mim quanto a si mesma. Nossa amiga Jill
Mastrano Dragomir tinha sido sequestrada no mês anterior e, até então, nossos esforços
para encontrá-la haviam sido em vão. Eu não tinha conseguido chegar a Jill em sonhos de
espírito e Sydney, uma talentosa aprendiz de magia humana, não pôde localizá-la usando
os feitiços à sua disposição. A única coisa que Sydney tinha descoberto era que Jill ainda
estava viva. Acreditávamos que, onde quer que estivesse, Jill estava sendo drogada, o que
criava uma barreira tanto para a magia humana como para a Moroi. Mas isso não impedia
que nos sentíssemos inúteis. Nós dois gostávamos muito de Jill, e minha amizade com ela
era especialmente intensa, visto que tinha usado o espírito para trazê-la de volta da beira
da morte. Não saber o que havia acontecido com ela lançara uma nuvem negra constante
sobre mim e Sydney, acabando com todas as nossas tentativas de felicidade naquela prisão
domiciliar autoimposta.
— Não importa — eu disse. — Quando a gente encontrar Jill, vou precisar da
magia. Não tem como saber o que vamos encarar.
— Tipo curar uma espinha dela? — Sydney perguntou.
Fechei a cara.
— Falei pra você: não foi nada! Deixa que eu me preocupo comigo e com a
quantidade de espírito que posso usar. Essa não é sua função.
Ela ficou incrédula.
— Claro que é! Sou sua esposa, Adrian. Se não me preocupar com você, quem vai?
Você precisa controlar o espírito.
— Eu sei lidar com ele — eu disse, entredentes.
— Sua tia ainda fala com você? — ela perguntou.
Virei a cara, me recusando a encará-la. Na minha cabeça, tia Tatiana suspirou: Você
nunca deveria ter contado sobre mim.
Diante do meu silêncio, Sydney disse:
— Fala, não fala? Adrian, não é saudável! Você sabe disso!
Virei para ela, furioso.
— Sei me cuidar, tá? Sei lidar com o espírito e com ela! — berrei. — Então para de
me dizer o que fazer! Você não sabe de nada, por mais que queira que todo mundo pense
que sabe.
Assustada, Sydney deu um passo para trás. A dor em seu olhar me magoou muito
mais do que suas palavras. Me senti péssimo. Como esse dia pôde dar tão errado? Tinha
tudo para ser perfeito. De repente, senti uma necessidade urgente de sair. Não suportava
mais o confinamento entre aquelas paredes, o controle da minha mãe, os fracassos com
Sydney e Jill. Eu e Sydney tínhamos ido à Corte em busca de proteção contra nossos
inimigos e nos escondemos ali para permanecermos juntos. Ultimamente parecia que
estávamos prestes a nos separar justamente por essa situação.
— Preciso sair — falei.
Sydney arregalou os olhos.
— Pra onde?
Passei a mão no cabelo.
— Pra qualquer lugar. Qualquer lugar pra tomar um ar. Qualquer lugar que não
seja aqui.
Virei antes que ela pudesse dizer alguma coisa e saí pisando firme pela sala,
passando pela minha mãe, que bebia do fornecedor. Ela me lançou um olhar intrigado,
mas a ignorei e continuei andando até sair pela porta e atravessar o saguão do prédio de
hóspedes. Foi só quando cheguei lá fora e o ar agradável do verão tocou minha pele que
parei para avaliar meus atos. Coloquei um chiclete na boca, que era minha estratégia atual
para não fumar quando ficava estressado. Observei o prédio atrás de mim, me sentindo
culpado e covarde por fugir da briga daquela maneira.
Não se sinta mal, disse tia Tatiana. Casamento é difícil. Foi por isso que nunca casei.
É difícil, concordei. Mas isso não é desculpa para fugir. Preciso voltar. Preciso pedir desculpas.
Preciso resolver essa situação.
Você nunca vai resolver essa situação trancado no quarto enquanto Jill está desaparecida, tia
Tatiana me avisou.
Dois guardiões passaram por mim bem nessa hora e ouvi um trecho da conversa
deles. Mencionavam patrulhas extras para a reunião do conselho que estava acontecendo.
Lembrei do comentário da minha mãe mais cedo e tive uma ideia. Comecei a correr na
direção contrária do prédio, rumo ao palácio real, torcendo para conseguir chegar a
tempo na reunião.
Sei o que fazer, falei para tia Tatiana. Sei como tirar a gente daqui e dar um jeito na minha
relação com Sydney. Precisamos de um propósito, de um objetivo. E vou conseguir isso para nós. Preciso
conversar com Lissa. Se conseguir fazer com que ela entenda, posso dar um jeito em tudo.
A voz fantasma não respondeu. Ao meu redor, a meia-noite cobriu o mundo com
escuridão. Era hora de dormir para os humanos, mas o auge do dia para nós, que
seguíamos um horário invertido. A Corte Moroi tinha instalações parecidas com as de
uma universidade: cerca de quarenta prédios respeitáveis de tijolinhos, construídos em
torno de lindos campos e pátios paisagísticos. Estávamos no ápice de um verão quente e úmido, e tinha muita gente na rua. A maioria estava ocupada demais com as suas coisas
para me notar ou se dar conta de quem eu era. Aqueles que notavam me lançavam os
mesmos olhares curiosos de sempre.
Eles têm inveja, tia Tatiana declarou.
Não acho que seja isso, disse para ela. Mesmo sabendo que ela não passava de uma
ilusão, às vezes era difícil não responder.
Claro que é. O nome Ivashkov sempre inspirou medo e inveja. Eles são todos inferiores e sabem
disso. No meu tempo isso nunca teria sido tolerado. Essa rainhazinha de vocês está perdendo o controle
das coisas.
Mesmo com os olhares invasivos, gostei do passeio. Realmente não era saudável
ficar trancado dentro de casa por tanto tempo, e nunca pensei que admitiria isso. Apesar
de o ar estar denso por causa da umidade, me pareceu leve e refrescante, e me peguei
desejando que Sydney estivesse ali comigo. Um momento depois, concluí que não seria o
ideal. Ela precisava sair depois, quando o sol já tivesse nascido. Essa sim era a hora de os
humanos saírem. Seguir nosso horário devia ser tão difícil para ela quanto o isolamento.
Fiz uma nota mental para caminhar com ela mais tarde. O sol não era fatal para nós
Moroi como era para os Strigoi — os vampiros mortos-vivos do mal —, mas nem
sempre era confortável. A maioria dormia ou ficava em casa durante o dia, e Sydney teria
menos chances de encontrar alguém se programássemos bem nossa saída.
A ideia me animou e coloquei outro chiclete na boca ao chegar ao palácio real. Por
fora parecia igual aos outros prédios, mas, por dentro, era decorado com toda a
grandiosidade e opulência que se esperaria da realeza de uma civilização antiga. Os Moroi
elegiam seus monarcas dentre doze famílias reais, e retratos enormes dessas figuras
ilustres tomavam os corredores, iluminados pela luz dos candelabros resplandecentes.
Muita gente andava por lá e, quando cheguei à câmara do conselho, vi que a reunião tinha
acabado. As pessoas estavam saindo e, quando entrei, muitos deles também pararam para
me encarar. Ouvi murmúrios de “abominação” e “esposa humana”.
Ignorei e mantive o foco no meu verdadeiro objetivo: a frente do salão, onde, diante
da plataforma do conselho, estava Vasilisa Dragomir — a “rainhazinha” a que tia Tatiana
tinha se referido. Lissa, como eu a chamava, estava em pé, rodeada por guardiões
dampiros com terno escuro: guerreiros metade humanos e metade Moroi, cuja raça tinha
se originado muito tempo atrás, quando casamentos entre Moroi e humanos não eram
motivo de escândalo. Os dampiros não podiam ter filhos entre si, mas, por algum
capricho genético, podem gerar descendentes com os Moroi.
Diante dos guarda-costas de Lissa, a imprensa Moroi gritava perguntas que ela
respondia do seu jeito calmo. Invoquei um pouco da magia de espírito para checar sua
aura. Seu brilho era dourado, indicando que Lissa era uma usuária de espírito assim
como eu; mas suas outras cores estavam mais fracas e trêmulas, mostrando que estava
incomodada. Liberei a magia enquanto corri até o amontoado de gente e acenei para ela,
esperando ser ouvido apesar do barulho.
— Vossa Majestade! Vossa Majestade!
Não sei como, mas ela ouviu minha voz por entre as outras e me chamou adiante
quando terminou de responder uma pergunta. Seus guardiões abriram espaço para me
deixar passar. Isso atraiu a curiosidade de todos, ainda mais quando viram quem tinha
recebido permissão para entrar no espaço pessoal dela. Dava para ver que estavam loucos
para saber sobre o que conversávamos, mas os guardiões os mantiveram à distância. De qualquer forma, o salão estava barulhento demais para conseguirem nos ouvir.
— Ora, que surpresa inesperada. Você não poderia ter marcado um horário? —
ela me falou com a voz baixa, ainda com o sorriso cênico no rosto. — Teria chamado
muito menos atenção.
Dei de ombros.
— Tudo que faço chama atenção ultimamente. Nem percebo mais.
Uma faísca de diversão sincera brilhou em seus olhos. Me senti bem por
proporcionar pelo menos isso.
— O que posso fazer por você, Adrian?
— O que eu posso fazer por você? — perguntei, ainda eufórico pela ideia que havia
tido. — Eu e Sydney precisamos sair para procurar Jill.
Ela arregalou os olhos e seu sorriso vacilou.
— Deixar vocês saírem? Faz um mês que me imploraram para deixá-los ficar!
— Eu sei, eu sei. E agradeço muito por isso. Mas seus guardiões ainda não
encontraram Jill. Você precisa de uma ajuda com habilidades especiais.
— Se me lembro bem — ela disse —, você e Sydney já tentaram usar essas
habilidades especiais e não conseguiram nada.
— É exatamente por isso que precisa deixar a gente sair daqui! — exclamei. —
Voltar para Palm Springs e…
— Adrian — Lissa me interrompeu —, você está ouvindo o que está falando?
Vocês vieram pra cá porque os alquimistas estavam perseguindo vocês. E agora querem
voltar pras garras deles?
— Bom, quando você põe nesses termos, não. Pensei que a gente poderia sair
disfarçadamente sem que eles notassem e…
— Não — ela voltou a me interromper. — De jeito nenhum. Já tenho coisas
demais pra me preocupar sem que vocês sejam capturados pelos alquimistas. Vocês
queriam proteção e é o que vou dar. Então não me venha com ideias de sair
disfarçadamente que vou mandar vigiar os portões. Vocês dois vão ficar aqui, em
segurança.
Em segurança e prestes a enlouquecer, pensei, lembrando do olhar magoado de Sydney.
Querido, tia Tatiana murmurou para mim, você já estava prestes a enlouquecer muito antes
disso.
— Tenho bons profissionais à procura de Jill — Lissa continuou quando não
respondi. — Rose e Dimitri, por exemplo.
— Por que ainda não a encontraram? E, se alguém quer depor você, por quê…
Não consegui terminar, mas a tristeza nos olhos cor de jade de Lissa me mostrou
que ela tinha entendido. Graças a uma lei que ela estava tentando mudar, Lissa precisava
ter pelo menos um parente vivo para continuar seu reinado. Para depor a rainha, bastaria
simplesmente matar Jill e provar. O fato de nada ter aparecido ainda era uma bênção, mas
aumentava o mistério da situação. Por que mais teriam levado Jill?
— Vai pra casa, Adrian — Lissa disse com doçura. — Depois a gente conversa
mais, em particular, se você quiser. Quem sabe a gente encontra outras opções?
— Quem sabe… — concordei. Mas não conseguia acreditar de verdade.
Deixei Lissa com seus admiradores e saí em meio à multidão embasbacada,
enquanto um humor sombrio e familiar começava a tomar conta de mim. A ideia de falar
com Lissa me dera uma esperança momentânea. Quando Sydney e eu tínhamos buscado refúgio, não fazíamos ideia do que estava prestes a acontecer com Jill. Era verdade que
Lissa tinha bons profissionais à procura da irmã, além da ajuda relutante da antiga
organização da qual Sydney fazia parte, os alquimistas. No entanto, não conseguia evitar a
sensação de culpa e a certeza de que, se Sydney e eu estivéssemos lá fora em vez de
escondidos, encontraríamos Jill. Alguma coisa que ainda não entendíamos estava
acontecendo. Senão os sequestradores de Jill já teriam…
— Ora, ora, ora. Olha só quem decidiu mostrar a carinha covarde.
Parei e pisquei algumas vezes, quase sem saber onde estava. Meus pensamentos
giravam tão rápido que já estava no meio do caminho para casa, numa trilha de pedras
que cortava caminho entre dois prédios. Um atalho silencioso e fora de mão, perfeito
para uma emboscada. Wesley Drozdov, um nobre Moroi que recentemente tinha virado
meu arqui-inimigo, bloqueava meu caminho, com vários de seus amigos atrás dele.
— São mais capangas do que de costume, Wes — eu disse, calmamente. — Arranje
mais alguns e talvez tenha uma luta justa para…
Um soco atingiu minhas costas, me deixando sem ar e me fazendo cambalear para a
frente. Wesley correu na minha direção e me acertou com um gancho de direita antes que
eu pudesse reagir. Entendi vagamente, apesar da dor, que o comentário que estava prestes
a fazer era verdade: Wesley estava com um grupo porque esse era o único jeito de
combater minha magia de espírito. Quando o pé de alguém me atingiu no joelho,
fazendo-me cair no chão, percebi que tinha sido mesmo um idiota ao aparecer
publicamente. Wesley estava esperando uma oportunidade de se vingar por mágoas
antigas, e sua chance havia chegado.
— Qual é o problema? — Wesley perguntou, me dando um chute forte na barriga
enquanto eu jazia no chão, tentando levantar. — Sua esposa fornecedora não está aqui pra
te salvar?
— É — outra pessoa gritou. — Cadê sua vadia humana?
Não consegui responder por causa da dor. Vieram outros chutes, de mais gente do
que consegui contar. Seus rostos alternavam sobre mim, e fiquei espantado ao reconhecer
vários deles. Nem todos eram os parceiros habituais de Wesley. Alguns eram pessoas que
conhecia, com quem já tinha bebido no passado… pessoas que poderia ter considerado
amigas.
Um golpe na minha cabeça fez estrelas dançarem diante dos meus olhos,
embaralhando minha visão por um momento. Seus xingamentos se misturaram numa
cacofonia ininteligível enquanto eu levava um golpe atrás do outro. Me encolhi de dor,
com dificuldade para respirar. De repente, em meio à bagunça, uma voz clara perguntou:
— Que diabos está acontecendo aqui?
Piscando para tentar recuperar o foco, consegui distinguir mãos fortes puxando
Wesley e jogando-o contra a parede de um dos prédios ao lado. Foi necessário que mais
dois do grupo sofressem o mesmo para que todos percebessem que algo tinha dado
muito errado. Começaram a recuar feito o rebanho assustado que eram e o rosto familiar
de Eddie Castile surgiu diante de mim.
— Ninguém mais quer ficar? — perguntei com a voz fraca. — Vocês ainda estão
em maior número.
O número deles não importava diante de um guardião como Eddie, e eles sabiam
disso. Não consegui ver todos fugindo, mas imaginei que tinha sido maravilhoso. Caiu
um silêncio e, um momento depois, outra pessoa me ajudou a levantar. Virei para trás e encontrei outro conhecido: Neil Raymond, me apoiando com o braço.
— Consegue andar? — Neil perguntou com um leve sotaque britânico na voz.
Fiz uma careta ao ficar de pé, mas assenti.
— Sim. Primeiro vamos pra casa e depois a gente vê se quebrei alguma coisa. Aliás,
obrigado — acrescentei, enquanto Eddie me segurava pelo outro braço e começávamos a
andar. — É bom saber que este Moroi em perigo aqui pode contar com cavaleiros tão
charmosos para protegê-lo por aí.
Eddie sacudiu a cabeça.
— Coincidência total, na verdade. Por acaso, a gente estava a caminho da sua casa
com uma notícia.
Um calafrio percorreu meu corpo e interrompi meus passos mancos.
— Que notícia? — perguntei.
Um sorriso apareceu no rosto de Eddie.
— Relaxa, é uma notícia boa. Eu acho. Só surpreendente. Você e Sydney têm uma
visita esperando no portão de entrada. Uma visita humana.
Se não estivesse sentindo tanta dor, meu queixo teria caído. Era mesmo uma visita
inesperada. Ao casar comigo e buscar refúgio entre os Moroi, Sydney tinha se isolado de
quase todos os seus contatos humanos. Era estranho um deles aparecer, e não poderia
ser um alquimista. Um alquimista teria sido mandado embora na mesma hora.
— Quem é? — perguntei.
O sorriso de Eddie se abriu de orelha a orelha.
— Jackie Terwilliger.
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Bloodlines - O Circulo Rubi
VampirosDepois que Sydney Sage escapou das garras dos alquimistas, que a torturaram por viver um romance proibido com Adrian Ivashkov, o casal passou a viver exilado na Corte Moroi. Hostilizada por todos ao seu redor por ser uma humana casada com um vampiro...