3 Adrian

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Depois da partida de Sydney, os minutos pareciam levar horas para passar. Fiquei
andando no nosso pequeno flat de um lado para o outro, com o coração apertado, me
preparando para o pior. Temia que a qualquer segundo receberia a notícia de que o
plano tinha dado errado e que os guardiões tinham interceptado Sydney tentando fugir da
Corte.
— Meu filho, você precisa fazer isso? — minha mãe perguntou finalmente. — Está
deixando os bichos agitados.
Parei e me virei para o chão, onde o sr. Bojangles encarava desconfiado Pulinho, o
dragão encantado que Sydney tinha invocado no começo daquele ano. Pulinho havia se
tornado uma espécie de animal de estimação e observava o gato com uma empolgação que
obviamente não era recíproca.
— Acho que não sou eu, mãe. Eles só estão…
O toque do meu celular me interrompeu e corri para pegá-lo, assustando tanto o
gato como o dragão. Na tela do aparelho, uma mensagem de texto de Eddie clara e
sucinta: Saímos da Corte. Está tudo bem.
Mandei de volta: Continuo casado com uma gata?
Sim, veio a resposta, seguida um momento depois por: Mas a sra. T jura que é
temporário.
Parte da minha ansiedade diminuiu, mas não completamente. Escrevi: Me avisa
quando ela voltar.
Vinte minutos depois, chegou uma nova mensagem, da própria Sydney: De volta à
forma humana. Tudo parece normal.
Parece?, perguntei.
Bom, tirando uma vontade estranha de perseguir luzes em movimento, ela respondeu.
Se esse é o pior efeito colateral, por mim tudo bem. Me mantenha informado. Te amo.
Também te miau, ela respondeu. Logo se corrigiu em outra mensagem: Quer dizer,
também te amo.
Sorri e guardei o celular, mas ainda não estava nem perto de sentir que tudo corria
bem. Não conseguia deixar de lado a sensação de que as coisas não estavam inteiramente
bem resolvidas entre mim e Sydney. Isso sem contar os riscos que ela enfrentava. Havia
conseguido sair da Corte, mas talvez tivesse de enfrentar todos os perigos que nos
levaram a buscar refúgio ali não fazia muito tempo.
Só se eles descobrirem que ela saiu, disse a voz da tia Tatiana num raro momento de
ajuda genuína. Enquanto ninguém estiver procurando por ela e ela não for descoberta, vai estar segura.
Então não faça besteira.
Certo, concordei. E ninguém vai ter motivos para pensar que ela não está aqui. Ela nunca sai
do nosso flat e não recebemos muitas visitas mesmo.
Naquele mesmo dia, é óbvio que recebemos uma visita.
Felizmente, não era um regimento de guardiões exigindo saber o paradeiro de
Sydney. Em vez disso, encontrei Sonya Karp Tanner ao abrir a porta, sorrindo ao me ver.
Qualquer alívio que senti ao vê-la foi exterminado pela voz nervosa de tia Tatiana:
Não baixa a guarda de jeito nenhum!, ela exclamou.
Sonya é nossa amiga, respondi em silêncio.
Tia Tatiana discordou. Não importa. Ninguém pode saber que Sydney saiu, por mais que
você pense que Sonya seja sua amiga. Basta um escorregão, não importam as boas intenções. Quanto
menos gente souber um segredo, melhor.
Com uma pontada de tristeza, percebi que ela tinha razão. Enquanto conversava
mentalmente com o fantasma, a expressão simpática de Sonya deu lugar a outra de
estranheza.
— Você está bem, Adrian? — Sonya perguntou.
— Sim, sim — respondi, convidando-a para entrar. — Só estou cansado. Tive uma
manhã meio difícil. — Apontei vagamente para o meu rosto, que ainda carregava os sinais
da briga com Wesley e seu bando.
Como esperava, consegui desviar a atenção de Sonya. Seu rosto se encheu de
preocupação.
— O que aconteceu?
— Ah, o de sempre. Alguns idiotas com inveja por eu ter casado com a humana
mais bonita do pedaço.
— Onde ela está? — Sonya perguntou, observando o flat vazio. — E a sua mãe?
— Minha mãe foi dormir — respondi. — E Sydney… saiu pra dar uma volta.
O olhar penetrante de Sonya se voltou para mim.
— Ela saiu depois de você ter sido atacado hoje de manhã?
— Bom, já é de dia, então não tem tanto risco. E… Neil foi com ela. — Quase falei
Eddie, mas não tinha certeza se Sonya sabia que ele saíra da Corte. Conhecendo minha
sorte, Neil poderia aparecer sem avisar a qualquer instante e acabar com a minha mentira.
— Ela precisava tomar um pouco de ar — acrescentei, notando a expressão cética de
Sonya. — Ficar enfurnada aqui dentro tem feito mal pra ela. — Pelo menos isso não era
mentira.
Sonya continuou me encarando por mais um tempo antes de finalmente mudar de
assunto. Ela provavelmente conseguia ver pela minha aura e pela minha linguagem
corporal que não estava sendo inteiramente honesto, mas era improvável que pudesse
adivinhar a verdade.
— De qualquer forma, foi você que vim ver — Sonya disse. — Preciso conversar
sobre um assunto com você. Ou melhor, sobre uma pessoa.
Sentei à mesa da cozinha e fiz sinal para ela sentar também. Conversar sobre
alguém? Por mim tudo bem, desde que não fosse sobre Sydney.
— Sobre quem? — perguntei.
Sonya entrelaçou os dedos e respirou fundo.
— Charlotte Sinclair.
Fechei a cara. Charlotte podia não ser um assunto tão problemático quanto a
situação de Sydney no momento, mas definitivamente não seria uma conversa agradável.
Ela era uma usuária de espírito assim como eu. Fiquei bem amigo dela quando Sydney
estava em cativeiro. Infelizmente, Charlotte queria ser uma amiga muito mais íntima e
estava interpretando as coisas errado. Ela reagira mal à minha rejeição e pior ainda
quando descobriu que eu tinha casado com uma humana. Nas raras ocasiões em que
cruzara com ela desde meu retorno à Corte, sempre me lembrava da expressão “se um
olhar matasse…”.
— O que tem a Charlotte? — perguntei, desconfiado. — Ela ainda está trabalhando
pra você?
Sonya era a líder de um projeto que tinha como objetivo usar o espírito para
impedir que as pessoas fossem transformadas em Strigoi. Charlotte tinha ajudado por
acidente no início do projeto quando restaurou a irmã, Olive, que havia sido
transformada em Strigoi. Com vários de nós trabalhando juntos, tínhamos conseguido
transferir essa magia de espírito para o sangue de Neil, criando uma vacina eficaz capaz de
protegê-lo contra uma transformação forçada. O triunfo de Sonya, porém, teve vida curta,
pois ela não conseguiu repetir o efeito em mais ninguém. Mas ainda trabalhava
incansavelmente para atingir sua meta.
— Tecnicamente sim, mas faz tempo que não faz nada de significativo. — A
expressão de Sonya se agravou. — Charlotte anda meio… desligada ultimamente.
Não consegui conter uma risadinha com isso.
— Somos usuários de espírito. Somos todos meios desligados.
Sonya não retribuiu o sorriso.
— Não desse jeito. Se você a visse… bom, você entenderia. Ontem falei para ela
voltar pra casa porque não estava falando coisa com coisa. Parecia que não dormia havia
semanas. A única usuária de espírito que já vi num estado tão ruim foi… bom, Avery
Lazar.
Isso me pegou de surpresa. Avery estava internada na unidade psiquiátrica de uma
prisão Moroi.
— Avery usava quantidades absurdas de espírito — falei para ela. — Tipo, absurdas.
E o tempo todo. — Trazer Jill de volta à vida tinha me afetado profundamente, drenando
meu espírito por um tempo, mas aquilo só aconteceu uma vez. Avery havia tentado
diversas façanhas altamente poderosas várias vezes. Quando sua mente não aguentou
mais, acabou naquele estado. — Charlotte teria que fazer magias muito poderosas para
acabar daquele jeito.
— É exatamente disso que tenho medo — Sonya falou, com a expressão carregada.
Levei um susto, recordando de Avery.
— Que ela esteja tentando forjar parceiros de laço com beijos das sombras?
— Não, não isso… mas algo que exija tanto poder quanto e esteja sendo feito
regularmente. Sempre que tento tirar uma explicação, ela foge do assunto ou começa a
falar coisas sem sentido. — Sonya suspirou. — Estou preocupada, Adrian. Ela precisa de
ajuda, mas se recusa a falar comigo.
O silêncio incisivo cresceu, e finalmente entendi aonde ela queria chegar.
— Quê? Você acha que ela falaria comigo?
Sonya deu de ombros.
— Não sei pra quem mais pedir.
— Bom, pra mim é que não! — exclamei. — Ela ficou furiosa quando dei um fora
nela. Se tem um problema e precisa de ajuda, não é a mim que ela vai recorrer. Você
precisa pedir pra outra pessoa.
— Não existe outra pessoa! A irmã dela continua desaparecida. E você ficou
sabendo que Charlotte largou o emprego no escritório? Quer dizer… na verdade, acho
que foi demitida, mas é difícil tirar uma resposta dela. Até onde sei, eu e você somos as
únicas pessoas que se importam com o que ela está fazendo consigo mesma… e a gente
precisa ajudar de alguma forma.
— Ela não vai falar comigo — insisti.
Sonya passou a mão no cabelo ruivo-escuro.
— Você pode se surpreender. Mesmo que as coisas tenham… dado errado entre
vocês, estava na cara que ela ainda sentia uma conexão. Por favor, Adrian. Por favor, só
tenta. Se ela mandar você embora, tudo bem, que seja. Não vou pedir de novo.
Fiz menção de recusar mais uma vez, mas me contive ao observar Sonya com mais
atenção. Ela estava realmente perturbada por essa história. Dava para notar na sua voz e
nos seus olhos… até nas cores da sua aura. Sabia que Sonya não fazia o tipo que
exagerava. Também sabia que não pediria isso pra mim se não estivesse preocupada de
verdade, ainda mais porque foi ela quem me aconselhou a ficar longe de Charlotte para
protegê-la.
Vi que horas eram. Estava ficando tarde para os nossos horários. A maioria dos
Moroi estava indo dormir.
— Tudo bem se esperar pra ir à casa dela amanhã?
Sonya pensou e fez que sim.
— Acho que não tem problema. Não acho que ela vá dormir tão cedo, mas é
melhor você esperar Sydney voltar para Neil ir com você.
Quase falei que era Eddie que estava com Sydney, não Neil, mas logo lembrei da
história que tinha inventado. Precisaria entrar em contato com Neil para garantir que ele
confirmasse o que falei. Se não tomasse cuidado, as coisas poderiam sair do controle
muito rápido. Era por isso que eu odiava mentir: raramente a história continuava
simples.
— Por mim tudo bem — falei, levantando junto com Sonya. — Depois te conto
como foi.
— Obrigada. Sei que não é… — Ela se interrompeu quando o sr. Bojangles passou
correndo pela cozinha enquanto Pulinho corria atrás. Sonya virou para mim, espantada.
— Quando vocês arrumaram um gato?
— Hum, hoje, na verdade. Jackie Terwilliger, a antiga professora de Sydney, sabe?
Deixou aqui quando veio nos visitar.
Essa era obviamente uma novidade para Sonya.
— Ela veio aqui? Na Corte? Quanto tempo ela ficou?
— Não muito — disse, já arrependido de ter mencionado o nome dela. — Só veio
saber como Sydney estava.
— É um esforço e tanto só para saber como alguém está. Um telefonema seria mais
simples.
Rezei para que estivesse parecendo inocente.
— É, mas aí ela não poderia ter dado o gato pra gente. Presente de casamento
atrasado.
— Adrian — Sonya começou, usando o tom que devia usar para repreender os
alunos quando era professora de biologia do ensino médio —, o que você não está me
contando?
— Nada, nada — eu disse, levando-a até a porta. — Relaxa, está tudo bem com a
gente. A única coisa com a qual você precisa se preocupar é quão rápido Charlotte vai me
mandar catar coquinho.
— Adrian…
— Está tudo bem — eu disse, alegremente. Abri a porta para ela. — Obrigado pela
visita. Manda um oi pro Mikhail por mim.
Ficou claro pela expressão dela que eu não tinha conseguido convencê-la da minha
inocência nem um pouquinho, mas ela não parecia querer me compelir para contar o que
realmente estava acontecendo… pelo menos não agora. Nos despedimos e soltei um
suspiro aliviado quando ela foi embora, torcendo para que mais ninguém chegasse e me
obrigasse a inventar outra desculpa sobre por que Sydney não estava em casa.
Fui dormir logo depois. Uma mensagem de Sydney me acordou ao meio-dia,
informando que ela, Eddie e Jackie tinham chegado a Pittsburgh, mas só iriam investigar
o museu depois que a noite caísse. Ela me tranquilizou dizendo que estava tudo bem e fiz
o mesmo. Achei que seria melhor se ela não soubesse que eu havia aceitado conversar
com uma garota possivelmente maluca que ou ainda estava apaixonada por mim ou me
desprezava completamente. Sydney já tinha preocupações demais.
Quando a Corte Moroi começou a despertar naquele dia, dei um jeito de chamar
Neil para me levar até a casa de Charlotte. Ainda era cedo, então não tinha muita gente na
rua, mas achei melhor me precaver. Neil, movido pelo dever, ficou feliz em me ajudar,
mas eu sabia que ele tinha segundas intenções ao ir ver Charlotte comigo. Meses antes, ele
e a irmã dela, Olive, tinham começado um relacionamento. Ninguém sabia direito até que
ponto haviam chegado, mas as coisas terminaram de repente quando Olive sumiu. Desde
então, ela fez pouco contato com Charlotte e não falou mais com Neil. Eu duvidava que
Charlotte tivesse alguma informação nova sobre o paradeiro da irmã, mas Neil devia ter
esperanças.
O sol do fim de verão estava bem acima da linha do horizonte, mesmo que ainda
fosse por volta das seis quando chegamos à porta de Charlotte. Ela morava numa região
de prédios habitados por empregados (ou ex-empregados, no caso) da Corte, longe das
moradias muito mais luxuosas onde nobres como meu pai moravam. Respirei fundo
enquanto encarava a porta, criando coragem.
— Não vai ficar mais fácil se você deixar pra depois — Neil falou, nada prestativo.
— Eu sei — respondi.
Decidido, dei duas batidinhas na porta, torcendo em segredo para que Charlotte
estivesse dormindo ou fora de casa. Assim estaria sendo sincero se contasse para Sonya
que havia tentado e poderia deixar por isso mesmo. Infelizmente, Charlotte abriu a porta
quase imediatamente, como se estivesse esperando logo atrás dela.
— Oi, Adrian — ela disse, desconfiada. Voltou os olhos cinza para trás de mim.
— Neil.
Ele cumprimentou com um aceno curto de cabeça, mas fiquei boquiaberto por um
momento. Charlotte não era de uma família rica ou nobre, mas sua beleza era incrível e
sempre se vestia de forma impecável.
Pelo menos antigamente era assim.
Não dava para reconhecer a Charlotte de sempre em nenhum aspecto. Seu cabelo
castanho-escuro e encaracolado parecia não ver uma escova havia séculos. Na verdade,
também parecia não ser lavado havia um tempo. Uma saia azul amarrotada destoava da
camiseta laranja, sobre a qual estava um cardigã cinza do avesso. Um dos pés estava
coberto por uma meia branca até o tornozelo. A meia do outro era estampada com listras
vermelhas e brancas e chegava até o joelho.
No entanto, não foram as estranhas escolhas de vestuário o que mais me alarmou,
mas seu olhar, que comprovou que Sonya não estava exagerando. Olheiras escuras
marcavam o rosto de Charlotte, embora houvesse um brilho nos olhos, quase alertas
demais, cintilando febris. Era um olhar que tinha visto em usuários de espírito levados ao
limite. Era o olhar que tinha visto em Avery Lazar.
Engoli em seco.
— Oi, Charlotte. A gente pode entrar?
Ela cerrou os olhos.
— Pra quê? Pra repetir que a gente não tem nada a ver? Pra falar que a gente nunca
tem como dar certo porque não sou humana e, pelo jeito, você só fica com pessoas que
podem ser seu jantar?
Comecei a perder a calma ao ouvir o sarcasmo, mas então lembrei que ela não
estava bem.
— Desculpa pelo que falei na nossa última conversa. Mesmo. Conheci Sydney
muito antes de conhecer você. Mas não é sobre isso que vim conversar. Por favor, a gente
pode entrar?
Charlotte me encarou em silêncio por um longo tempo, e aproveitei a oportunidade
para invocar o espírito e dar uma olhada na aura dela. Assim como vira na de Lissa no
dia anterior, a aura de Charlotte era dourada por ser uma usuária de espírito. Ao
contrário do dourado de Lissa, porém, o dourado de Charlotte tinha um brilho fraco,
quase pálido. Não ardia como uma chama. As outras cores eram igualmente frágeis,
acendendo e apagando.
— Está bem — Charlotte disse, finalmente.
Ela deu um passo para o lado e deixou a gente entrar. O que encontrei lá dentro era
quase tão desconcertante quanto a sua aparência. Já tinha ido à casa dela antes, nos
tempos em que frequentávamos muitas festas juntos. O apartamento minúsculo parecia
mais uma quitinete: tinha um único cômodo que servia de sala e quarto. Apesar de o
lugar ser pequeno, Charlotte sempre se esforçava para mantê-lo arrumado e bem
decorado. No entanto, assim como o cuidado que ela dedicava à aparência física, essa preocupação parecia coisa do passado.
Pratos com crostas de sujeira cheirando mal estavam empilhados na pia da cozinha,
onde algumas moscas zanzavam. Roupas sujas, livros e latas de energético estavam
jogados por todo canto: nas mesas, no chão, até em cima da cama. O mais estranho de
tudo era uma pilha de revistas no chão ao lado de um monte de papel rasgado.
— Onde você dorme? — perguntei, sem conseguir me conter.
— Não durmo — ela falou, juntando as mãos atrás das costas. — Não durmo. Não
tenho tempo. Não posso correr esse risco.
— Você precisa dormir em algum momento — Neil disse, pragmático.
Ela balançou a cabeça, agitada.
— Não posso! Preciso continuar tentando encontrar Olive. Quer dizer, já encontrei.
Mais ou menos. Depende de como você vê. Mas ainda não cheguei até ela, sabe? Esse é o
problema. Por isso preciso continuar tentando. Por isso não posso dormir. Entendeu?
Não entendi nada, mas Neil perdeu o ar com a menção ao nome de Olive.
— Você a encontrou? Sabe onde ela está?
— Não — Charlotte disse, um pouco irritada. — Acabei de falar isso pra vocês.
Do nada, ela se jogou no chão ao lado da pilha de revistas. Pegou uma revista ao
acaso e começou a rasgá-la em pedacinhos, página por página, aumentando o monte de
papel rasgado.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Pensando — ela respondeu.
— Não, estou falando das revistas.
— Elas me ajudam a pensar — ela explicou.
Eu e Neil nos entreolhamos.
— Charlotte — eu disse, com cuidado —, acho que talvez seria bom você ir ao
médico. Eu e Neil podemos levar você, se quiser.
— Não posso — ela declarou, ainda rasgando a revista metodicamente. — Não até
entrar em contato com Olive.
Agachei ao lado dela, desejando saber melhor como conversar com uma pessoa tão
fora de si. Era de se esperar que eu fosse um especialista nisso.
— Como você está tentando entrar em contato com ela? Por telefone?
— Por sonho — Charlotte disse. — Eu consegui. Algumas vezes. Mas depois ela
me bloqueou. Virou o sonho contra mim. Estou tentando ultrapassar o bloqueio, mas
não consigo.
Pela cara de Neil, dava para ver que ele estava torcendo para que aquilo fizesse
sentido para mim, mas eu estava mais confuso do que nunca. Uma pessoa especialmente
resistente poderia dificultar que um usuário de espírito estabelecesse uma conexão via
sonho, mas o resto não fazia sentido.
— Olive não é uma usuária de espírito — falei para ela. — Ela não pode fazer nada
com o sonho sem a sua permissão. Você tem o controle total.
— Ela pode, ela pode, ela pode. — Charlotte começou a rasgar a revista
energicamente. — Toda vez que tento falar com ela, ela coloca algum obstáculo! Coisas
que nunca nem pensei. Os pesadelos dela, os meus. Os de outra pessoa. Luto contra eles.
Luto. Luto mesmo. Mas isso consome muito espírito. — Ela parou abruptamente de
rasgar e encarou o vazio, desolada. — É exaustivo. E, quando consigo passar pelo
desafio, ela vai embora. Ela dá um jeito de acordar e não consigo falar com ela. Não consigo perguntar por que foi embora. Você sabe? — Os olhos de Charlotte passaram de
mim para Neil. — Vocês sabem por que ela foi embora?
— Não — eu disse, com carinho. — Só sei que você precisa descansar de verdade.
— Fiz menção de colocar a mão no seu ombro, mas ela se afastou de repente, com os
olhos cheios de fúria.
— Não me atormente — ela falou em voz baixa. — Não venha aqui fingir que é
meu amigo.
— Eu sou seu amigo, Charlotte. Independente do que aconteceu entre nós, ou
deixou de acontecer, sou seu amigo. Quero ajudar.
Num instante, sua raiva se transformou em desespero.
— Ninguém pode me ajudar. Ninguém… Espera. — De repente, ela agarrou meu
braço com uma força surpreendente e incômoda. — Talvez você possa me ajudar. Você é
o melhor usuário de espírito para visitar sonhos. Vem comigo da próxima vez que eu for
visitar Olive. Assim você vai ver… vai ver como ela está controlando o sonho! Se
juntarmos nossos poderes vamos ter força suficiente para impedi-la! Daí a gente fala com
ela!
Balancei a cabeça.
— Charlotte, ela não tem como…
Seus dedos apertaram meu braço com mais força.
— Ela consegue, Adrian! Vem comigo que você vai ver.
Pensei bastante antes de responder. Charlotte tinha razão — eu era o usuário de
espírito mais habilidoso para visitar sonhos que conhecíamos — e nunca tinha visto um
não usuário ser capaz de controlar um sonho. Estava na cara que Charlotte acreditava que
era isso que a impedia de entrar em contato com Olive. Não ousei dizer, mas fiquei me
perguntando se Charlotte não estava consumindo tanto espírito que seu controle estava
fraquejando. Isso explicaria por que ela teria dificuldades de criar uma conexão onírica e,
em seu estado alterado, tinha passado a acreditar que Olive estava interferindo.
Sim, mas em que ela está usando tanto espírito, então?, perguntou tia Tatiana.
Era uma boa pergunta. Observando Charlotte e seu estado desalinhado, não fazia a
menor ideia. Mesmo se ela tentasse formar uma conexão de sonho de espírito com Olive
todo dia, não seria o suficiente para deixar Charlotte naquele estado. Em que mais ela
estava usando magia? Ou será que a deterioração mental dela estava sendo acelerada por
algo além da magia? Seria o ápice do estresse devido ao desaparecimento de Olive e à
minha rejeição?
— Adrian — Neil arriscou —, teria algum jeito de você considerar ajudar?
Sem saber o que eu estava pensando, ele tomou minha demora para responder
como uma recusa a oferecer assistência. A verdade era que eu simplesmente não sabia
como. E, para falar a verdade, Charlotte precisava de muita ajuda, muito mais do que em
sonhos de espírito. Ela precisava de ajuda com a vida dela.
— Certo — eu disse, finalmente. — Vou ajudar você a se conectar com ela num
sonho, mas só se você dormir um pouco.
Charlotte começou a fazer que não na hora.
— Não consigo. Estou agitada demais. Preciso continuar procurando. Preciso…
— Você vai dormir um pouco — mandei. — Vou chamar Sonya e ela vai trazer um
calmante pra você. Você vai tomar. E vai dormir.
— Depois eu tomo. Agora a gente precisa entrar em contato com Olive. Ela está num horário humano. Vai pra cama daqui a pouco e não posso dormir. Primeiro a gente
entra em contato com ela e…
— Não. De jeito nenhum. — Falei usando o tom mais firme e inflexível que
consegui. — Se ela esperou tanto, pode continuar esperando. Dorme primeiro. Pelo
amor de Deus, Charlotte! Olha só pra você! Você está…
— O quê? O quê? — ela perguntou, com aquele olhar febril de antes. — Uma
bagunça? Feia? Não sou boa o bastante pra você?
— Você está exausta. — Suspirei. — Agora, por favor. Me deixa ligar pra Sonya.
Você vai dormir hoje e amanhã a gente procura Olive. Quando você estiver descansada vai
ter mais chance de, hum, lutar contra o controle dela. — Eu ainda não acreditava nessa
história, mas Charlotte sim; e ela finalmente aceitou.
— Está bem — ela disse. — Pode ligar pra Sonya.
Liguei e ela ficou aliviada ao ouvir que eu tinha feito algum progresso, ainda que
pequeno. Ela prometeu passar lá para ajudar Charlotte a dormir e prometi que ficaria até
ela chegar. Quando desliguei, Charlotte voltou a rasgar papel e começou a cantarolar uma
música que parecia “Sweet Caroline”.
— É muito legal da sua parte ajudar Charlotte — Neil murmurou, aproximando-se
quando estávamos do outro lado da sala. — Dormir vai ser bom pra ela. E, por motivos
egoístas… bom, admito que estou ansioso para que você entre em contato com Olive
também. Não que esse seja o principal motivo para fazer isto.
— Ei, já é um bom motivo. Todos são válidos. — Falei com um sorriso, sem
querer demonstrar como estava perturbado pelo estado de Charlotte. Porque, para ser
sincero, não estava fazendo isso por Neil, Sonya ou mesmo por Charlotte. Ver Charlotte
sentada cantarolando no chão, tão visivelmente fora de si… A verdade era que não era tão
impossível eu chegar àquele estado um dia. E, se esse dia chegasse, torcia
desesperadamente para que alguém também me ajudasse.

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