— Então aqui é o Canadá — eu disse, observando pela janela do carro.
— Pela última vez, aqui não é o Canadá — Sydney respondeu, revirando os olhos.
— É o norte de Michigan.
Não via nada ao redor além de árvores enormes em todas as direções. Apesar de ser uma tarde de fim de agosto, a temperatura parecia de outono. Esticando o pescoço dava para ver de relance águas cinzentas atrás das árvores à minha direita: o lago Superior,
segundo o mapa que tínhamos visto.
— Pode não ser o Canadá — aceitei —, mas é exatamente como eu imagino que o
Canadá seja. Só que lá deve ter mais hóquei.
Sydney abriu um sorriso complacente ao escorregar para mais perto no banco
traseiro.
— É muito diferente de Iowa.
— Com certeza — concordei, colocando o braço em volta dela enquanto
admirávamos a paisagem.
Era loucura pensar na distância que havíamos percorrido em menos de vinte e quatro horas. Depois de convencer Rose e Dimitri a irem conosco à comunidade dampírica, tivemos que esperar Dimitri descobrir a qual delas pertencia o medalhão de
Olive. Ele tinha retornado bem rápido, revelando que o símbolo no colar era usado por uma comunidade na península superior de Michigan. Dimitri e Rose pegaram uma série
de voos para chegar da Corte até lá. Sydney e eu havíamos escolhido a rota mais direta, voltando para o carro e dirigindo por doze horas. Tinha sido exaustivo, ainda mais considerando como havíamos dormido pouco, mas dividimos a direção para poder
cochilar. Isso também nos dera pouca oportunidade de conversar sobre os problemas
maiores que continuavam pairando sobre nós. Não sei se era uma coisa boa ou ruim.
— Vamos — Rose disse, saindo do banco do passageiro da SUV. — Acho que a
entrada é por ali.
Tínhamos encontrado com ela e Dimitri em Houghton. Então alugamos o carro
mais robusto que encontramos e seguimos até o estacionamento de terra batida onde
estávamos. Vários outros carros com placas de Michigan estavam parados ao lado do
nosso, a maioria de modelos resistentes para se embrenhar na mata. Por mais que
estivéssemos a apenas uma hora de Houghton, aquela dificilmente poderia ser
considerada uma região metropolitana. A cidade tinha o básico: mercados, um hospital,
cafés e até uma universidade; mas nada além disso. Depois que você saía da cidade, estava
praticamente de volta à floresta. Era tudo que eu conseguia ver agora, e levei um momento
para identificar a trilha que Rose indicou.
— Estreita — comentei enquanto eu e Sydney seguíamos Rose e Dimitri. A trilha
em si era aberta, mas ao redor dela a floresta era densa e difícil de atravessar.
— De propósito — Dimitri comentou, caminhando como se fizesse esse tipo de
trilha o tempo inteiro. Provavelmente o caminho que enfrentava todo dia para ir à escola
na Sibéria era assim. — Para dificultar a passagem dos Strigoi.
— Aposto que é um saco passar por aqui no inverno — acrescentei. Praguejei
quando um galho baixo enroscou na minha jaqueta.
Cuidado, avisou tia Tatiana. É couro italiano.
— Não seria uma surpresa se muitos saíssem no inverno — Dimitri comentou. —
É uma localização ideal para o calor, com uma latitude mais ou menos alta. No auge do
verão deve ter só umas cinco horas sem sol. Com isso e algumas defesas sólidas, dá pra
conter ataques relativamente bem… ainda mais quando estamos falando de um grupo de
dampiras. Elas sabem lutar.
Disso eu não duvidava. Continuei em silêncio enquanto me concentrava na
caminhada e em não engolir nenhum mosquito. Meus músculos estavam duros por
passar tanto tempo no carro, então até que era bom me mexer um pouco. Quando
Dimitri tinha dito que o símbolo do medalhão era de um lugar chamado Comunidade
Intencional do Pinheiro-Bravo, não fazia ideia de onde estaríamos nos metendo. Pelo
jeito, “comunidade intencional” era o nome moderno das comunidades, uma expressão
que os humanos ainda usavam. Graças ao conhecimento infinito de Sydney, também
aprendi ao longo do trajeto que muitas das comunidades não eram mais compostas por
um bando de hippies defensores do amor livre, estilo anos 1960. Algumas eram muito
modernas, mas adotavam estilos de vida sustentáveis. Outras eram pouco maiores do que
acampamentos. Dimitri nos dissera em Houghton que tudo indicava que essa comunidade
dampírica em particular tinha um tamanho intermediário. Eu estava cruzando os dedos
para que fosse algo mais moderno, talvez um tipo de resort secreto arborizado. Imagens
da vila Ewok do Start Wars VI: O retorno de Jedi me vieram à mente.
— Tomara que tenha encanamento — Rose disse. — Essa era a pior parte de ficar
com os Conservadores.
— Isso eu não achava tão ruim — Sydney comentou, surpreendentemente. — Foi
com a qualidade da carne que tive problemas.
— Espera, sem encanamento?! — exclamei. Meu cérebro teve dificuldade para
entender como daria para viver num lugar assim.
— Melhor se acostumar com a ideia — brincou Rose, me observando de soslaio.
— Talvez Liss não deixe vocês voltarem. Quando tudo isso acabar, vocês dois podem ter que morar com os Conservadores.
— Tenho certeza que a gente consegue encontrar uma alternativa melhor antes de
recorrer a isso — eu disse, com ar superior, sem querer admitir minhas inseguranças em
relação ao nosso futuro.
Dimitri não compartilhava da ironia de Rose.
— Se os alquimistas ainda estiverem atrás dela, tenho certeza que Lissa vai deixar
vocês voltarem para o flat na Corte.
Não vai ser divertido?, tia Tatiana disse. Voltar a ficar pertinho da sua mãe, sem que nunca
mais nenhum de vocês queira sair para ver a cara dos outros Moroi.
— Aquilo não é vida — murmurei, pensando em como eu e Sydney nos sentíamos
aprisionados lá. Mesmo quando brigávamos, nossa relação era mais vibrante quando
tínhamos nossa liberdade. Ao encarar Sydney nos olhos soube que ela estava pensando o
mesmo e tinha as mesmas dúvidas que eu sobre nosso futuro. Infelizmente, era
improvável que conseguíssemos respostas tão cedo. Precisávamos nos concentrar nas
preocupações imediatas. Jill. Olive.
Dimitri parou e apontou na direção da mata.
— Olhem. O começo das defesas.
Me virei para onde ele apontava e vi um brilho prateado na vegetação rasteira. Uma
estaca de prata enfeitiçada. As dampiras dessa comunidade deviam tê-las colocado em
lugares estratégicos em volta do assentamento, criando uma barreira mágica para manter
os Strigoi longe. Os mortos-vivos não conseguiriam ultrapassar esse tipo de poder, mas
exigia manutenção constante. Se os laços se enfraquecessem ou alguém mudasse uma
estaca de lugar, um Strigoi poderia passar. Era uma preocupação que todas as
comunidades de Moroi e dampiros tinham. As defesas na Corte eram checadas várias
vezes por dia.
Tínhamos acabado de passar a estaca quando uma silhueta surgiu na mata de
repente, entrando na frente de Dimitri. Ele assumiu uma posição defensiva ao ver a
recém-chegada e relaxou ao notar que era uma dampira. Ela também estava com uma
expressão firme e pronta para o ataque, além de carregar uma arma e uma estaca de prata
no cinto. O medalhão no seu pescoço era exatamente igual ao de Olive, exceto pela cor,
que era azul. O rosto da mulher suavizou ao ver Rose e Dimitri, mas voltou a ficar sério
ao me encarar.
— Saudações — ela disse. — Vocês estão procurando a Pinheiro-Bravo?
Rose se apertou para ficar ao lado de Dimitri, o que não era fácil na trilha estreita.
— Estamos procurando uma amiga — ela disse. — Achamos que ela está aqui com
vocês.
Depois de examinar Rose e Dimitri, a dampira cumprimentou Sydney com a cabeça
e então ficou imediatamente hostil ao me encarar.
— E ele? O que ele está procurando?
— A menina que estamos procurando também é minha amiga — falei, surpreso
com a reação dela. — Prometi pra irmã dela que a encontraria.
Nossa anfitriã pareceu cética e não entendi por quê. Eu pensaria que era
solidariedade entre dampiros, não fosse o fato de ela não ver problema na presença de
Sydney. A mulher devia ter visto a tatuagem de lírio de Sydney e imaginado que estava
fazendo alguma visita alquimista de rotina. Isso ainda não explicava a frieza da minha
recepção.
— Qual é o nome da sua amiga? — a mulher perguntou.
— Olive Sinclair — respondi.
Seu rosto se encheu de desprezo na hora, mas ficou claro que o desprezo era contra
mim, não Olive.
— Então foi você que a colocou em encrenca?
— Eu que… — Entendi o que ela queria dizer e fiquei vermelho, o que só devia ter
acontecido umas duas vezes na minha vida. — Quê? Não! Claro que não! Quer dizer, se
fosse eu, nunca… quer dizer… não sou o tipo de cara que…
— Não — Dimitri disse, categórico. — Adrian não é o responsável. Suas intenções
aqui são honráveis. Sou testemunha do caráter dele. Sou Dimitri Belikov. Estas são Rose
Hathaway e Sydney Ivashkov.
Normalmente, uma humana apresentada com um sobrenome da realeza Moroi
causaria um susto. Mas ficou claro que essa mulher não ouviu nada depois dos nomes de
Dimitri e Rose. Vi claramente em seus olhos a mesma admiração e veneração que já tinha
visto em tantos rostos sempre que essa dupla dinâmica se apresentava. E, com isso, a
mulher se transformou de uma leoa feroz em uma fã empolgada.
— Ai, meu Deus! — ela exclamou, efusiva. — Sabia que conhecia vocês de algum
lugar! Já vi suas fotos! Devia ter reconhecido na hora! Que vergonha! Entrem, entrem.
Meu nome é Mallory, aliás. Não vamos ficar aqui parados no meio do mato. Vocês devem
ter viajado muito para chegar aqui. Descansem um pouco. Comam alguma coisinha. Ai,
meu Deus!
Nós a seguimos pela trilha estreita que, no fim, se abria numa enorme clareira. O
Pinheiro-Bravo se revelou um misto entre um acampamento e um resort. Na verdade, me
lembrou um pouco uma cidade do Velho Oeste mesmo. Era completamente possível
imaginar um tiroteio acontecendo ali. Cabanas bonitas eram dispostas em fileiras
ordenadas que pareciam divididas entre uma área comercial e uma residencial. Os
dampiros, quase todos mulheres e crianças, circulavam por ali. Alguns paravam para nos
lançar olhares curiosos. Mallory nos guiou até uma grande cabana situada entre as áreas
comercial e residencial, saltitando a cada passo que dava.
Entramos no que parecia um escritório, e a primeira coisa que notamos foi que
havia eletricidade. Achei que era um bom indicativo de que haveria água encanada. Uma
dampira mais velha, com o cabelo loiro grisalho, estava sentada a uma mesa, mexendo no
computador. Ela também usava um medalhão azul. Ao nos ver, ela levantou e enfiou os
dedos no passante do cinto da calça jeans enquanto recostava na parede, exibindo as
botas de couro ornamentadas que reforçaram ainda mais minhas ideias estereotipadas de
Velho Oeste.
— Ora essa, quem você encontrou, Mallory? — ela perguntou, com um sorriso.
— Lana, você não vai acreditar em quem eles são — Mallory exclamou. — São…
— Rose Hathaway e Dimitri Belikov — Lana completou. Seus olhos então recaíram
em mim e Sydney, e ela arqueou a sobrancelha. — E Adrian Ivashkov e sua famosa esposa
humana. Já fui à Corte. Sei quem são as celebridades.
— Não somos celebridades — assegurei, colocando o braço em volta de Sydney e
apontando com a cabeça para Rose e Dimitri. — Não como esses dois.
Os cantos dos olhos de Lana se enrugaram quando sorriu para nós.
— Não? Seu casamento é fonte de muita especulação.
— Acho que isso nos torna mais um motivo de fofoca do que celebridades. —Mas, quando as palavras saíram da minha boca, me perguntei qual era a diferença entre as
duas categorias.
— Bom, é um prazer conhecer vocês. Todos vocês. — Lana deu alguns passos à
frente e apertou nossas mãos. — Olive me contou sobre seu excelente trabalho para criar
uma vacina Strigoi, lorde Ivashkov.
Ia começar a dizer que não estávamos tendo tanta sorte na vacina, mas algo mais
importante chamou minha atenção nas suas palavras.
— Você conhece Olive.
— Claro — disse Lana. — Conheço todo mundo aqui.
— Lana é nossa líder — Mallory explicou.
Lana soltou uma gargalhada.
— Sou mais uma administradora. Vocês estão aqui para ver Olive, imagino.
— Se a senhora permitir — Dimitri disse, com educação. — Ficaríamos gratos por
qualquer assistência que puder nos oferecer.
— A decisão não é minha. É de Olive. — Lana nos encarou por um instante, como
se estivesse tomando uma decisão. Por fim, assentiu. — Eu mesma levo vocês até lá. Mas
primeiro comam um pouco e relaxem. Sei que não é fácil chegar aqui.
Nós a agradecemos pela hospitalidade, mas foi difícil relaxar sabendo que
estávamos tão perto de Olive. Quando nos encontramos em Houghton, eu tinha feito
todo o relatório da parte que sabia da história para Rose e Dimitri. Eles ficaram tão
preocupados quanto eu e também concordaram que devia haver alguma coisa sinistra
acontecendo se ela achava tão necessário esconder a gravidez. Tive a impressão de que, se
alguém havia se aproveitado dela e Dimitri descobrisse o responsável, as consequências
seriam graves.
O jantar foi alguns sanduíches naturais de frango, uma refeição surpreendentemente
normal para um resort de meio-vampiros no meio da floresta. Sydney não hesitou antes
de comer o dela, o que dizia muito sobre como ela havia avançado na sua relação com
não humanos. Enquanto isso, Lana deixou claro que não havia nenhum fornecedor
oficial por ali e que eu não deveria nem pensar em pedir sangue de alguma dampira de
Pinheiro-Bravo. No entanto, seu tom de voz e meu conhecimento sobre essas
comunidades me fizeram desconfiar que havia dampiras ali que vendiam seu sangue a
Moroi com a mesma liberdade que vendiam seus corpos. Era o lado negro daqueles
acampamentos, o que havia lhes dado uma reputação tão negativa. Obviamente não eram
todas que praticavam, mas acontecia com frequência.
Depois do jantar, Lana foi fiel à sua palavra e nos levou pessoalmente, fazendo um
breve tour pela comunidade. Como tinha desconfiado, algumas das cabanas serviam
como lojas.
— Fazemos viagens regulares a Houghton para comprar suprimentos — ela
explicou. — Mas também tentamos ser o mais autossustentáveis possível. Cultivamos boa
parte da nossa comida e até costuramos algumas roupas. — Ela apontou para uma cabana
onde duas dampiras costuravam na entrada sob a luz de um lampião, já que o crepúsculo
avançava. Elas acenaram para nos cumprimentar. Ela apontou para outras cabanas
conforme passávamos. — Aquela é a loja da Jody, que sabe consertar tudo. E aquele ali é
nosso centro médico, por assim dizer. April é quem comanda o lugar, mas ela está fora
para comprar suprimentos. As coisas de que precisa são as mais difíceis de produzir. Ali
é a escola comandada por Briana.
— Vocês têm painéis solares lá — comentou Sydney. — Que ideia inteligente.
Lana sorriu, visivelmente orgulhosa.
— Foi ideia da Talia. A eletricidade chega até aqui, mas ela achou que a gente devia
ter uma fonte renovável à disposição.
Notei que todos os nomes eram femininos e que, tirando algumas crianças, a
comunidade era composta exclusivamente por mulheres. Por isso, foi um choque
quando avistei um Moroi andando perto de algumas cabanas separadas das outras. Ao
notar meu olhar, Lana fechou a cara e soltou um suspiro resignado.
— Sim. É lá que as meninas que querem “passar um tempo” com os hóspedes
vivem.
— Por que você não as expulsa? — Dimitri perguntou, com a expressão sombria.
— Porque algumas dessas meninas continuariam a fazer isso de qualquer jeito.
Fugiriam para morar em algum lugar menos seguro. Prefiro manter tudo sob meu
controle. Alguns homens só querem se divertir e há meninas que aceitam isso e não
esperam nada em troca… — Enquanto falava, Lana observava o Moroi que eu tinha visto.
Uma dampira segurava seu braço e eles riam ao passar por nós, entretidos em alguma
conversa particular. Ela parecia acompanhá-lo até a saída da comunidade e notei que o
seu medalhão era vermelho. Lana se virou para nós depois que eles passaram. — Outros
homens são pura confusão. É neles que precisamos ficar de olho… e, às vezes, são eles
que precisamos tirar à força.
— Alguma ideia sobre o tipo de homem com que Olive esteve envolvida? —
perguntei.
Lana voltou a caminhar, levando-nos para uma área de cabanas residenciais afastada
de onde o Moroi tinha vindo.
— Não. É assunto dela, por isso não insisti. Ela não recebeu nenhuma visita
masculina, isso eu posso dizer. Não parece ter nenhum interesse romântico.
— Tem um dampiro muito digno interessado nela — falei. — Mas ela cortou
relações com ele. E com todo mundo.
— É uma pena — Lana disse. Paramos diante de uma cabana bonitinha com
cortinas verdes. — Mas quem sou eu para julgar? Estamos todos lutando nossas próprias
batalhas da melhor maneira possível.
Muita sabedoria para uma aspirante a xerife da floresta, disse tia Tatiana.
Refleti sobre as palavras de Lana enquanto ela batia na porta da cabana. Uma
dampira com cachos rebeldes atendeu, sorrindo ao vê-la.
— Oi, mãe.
— Oi, Diana. — Lana deu um beijo na bochecha dela. — Olive está aí?
Diana examinou nosso grupo, fixando o olhar em mim por mais tempo. Odiava
que todo mundo ali esperasse o pior de mim. Era triste saber que, naquele lugar, a
presença de um homem Moroi gerava mais insegurança do que a de uma alquimista.
— Claro — ela disse. — Vou chamar.
Diana desapareceu dentro da cabana. Percebi que estava tenso enquanto
esperávamos. Ao perceber, Sydney apertou minha mão.
— Não acredito que estamos prestes a vê-la depois de tudo que aconteceu. Sem
monstros rochosos. Sem batalhas de espírito. — Precisei parar porque minha voz estava
embargada. — Acho que posso acertar a situação com Olive aqui, ser útil pra ela. Assim
não vou ter falhado com Charlotte…Sydney apertou minha mão com mais força.
— Você não falhou, Adrian. Ela fez as próprias escolhas.
Talvez, se você tivesse sido mais forte, se tivesse usado mais espírito no sonho… A voz da tia
Tatiana fez uma pausa para me deixar refletir sobre a ideia. Enfim, talvez Charlotte não
estivesse do jeito que está.
Fica quieta, retruquei para a voz fantasma. Sydney tem razão. Não é culpa minha. Charlotte
fez as próprias escolhas.
Se é o que você diz…, disse tia Tatiana.
Olive saiu bem nessa hora, usando as mesmas roupas que tinha visto no sonho. E,
assim como no sonho, estava visivelmente grávida. Começou a sorrir ao ver Lana, então
ficou paralisada ao notar nossa presença.
— Não — ela disse, andando para trás. — Não, não, não.
Rose deu um passo à frente.
— Olive, espera. Por favor. Queremos conversar com você. Queremos ajudar.
Olive balançou a cabeça, transtornada, e Lana colocou o braço em volta dela.
— Querida, faria bem falar com eles.
— Eu não quero! — Olive exclamou. Quando a cercamos, ela encarou cada rosto
como um bicho encurralado, e senti meu coração doer por ela. Seu olhar recaiu sobre
Sydney, e ela pareceu incrédula. — Uma alquimista!
— Não estou mais com eles — Sydney disse. — Estou aqui para te ajudar, assim
como todo mundo.
— Você conhece Sydney — lembrei Olive. — Pode confiar nela.
Olive ainda parecia assustada, mas pelo menos tirou os olhos de Sydney.
— Não tenho nada a dizer pra vocês!
— Então não diga nada — falei. — Só ouça. Dê uma volta comigo. Só comigo. Me
deixa contar o que está acontecendo com Charlotte. Você não precisa falar nada.
O nome da sua irmã fez com que Olive parasse de recuar. Ela tirou as longas
mechas de cabelo preto do rosto, indagando com os olhos cheios de lágrimas.
— Charlotte? Ela está bem? Naquele sonho…
Apontei para trás de mim.
— Vamos dar uma volta. Te conto tudo.
Depois de certa hesitação, Olive assentiu e saiu da cabana. Sydney entendeu minha
abordagem delicada e se manteve à distância e em silêncio. Rose, por outro lado, queria
claramente vir conosco, mas fiz um não rápido com a cabeça. Dimitri colocou a mão no
braço dela para enfatizar. Eu sabia que Olive gostava de Rose e Dimitri e que eles tinham
boas intenções, mas no momento havia gente demais. O medo de ser interrogada por um
grupo devia ser o motivo para ela ter buscado refúgio na floresta. Abri um sorriso
tranquilizador e quase usei um pouco de compulsão para acalmá-la, mas achei melhor
não. Como ela tinha crescido com uma irmã usuária de espírito, poderia reconhecer os
sinais e achar que eu estava tentando me aproveitar dela.
— Belo lugar — comentei quando entramos numa trilha entre as cabanas. As
árvores sobre nós eram altas e passarinhos cantavam nos galhos.
— Me fala sobre Charlotte — Olive disse, sem perder tempo com conversa fiada.
— Ela está bem?
Hesitei.
— Mais ou menos. O que ela fez naquele último sonho… enfim, envolveu muito espírito. Muito. — Tentei encontrar um jeito delicado de falar sobre isso sem mencionar
que Charlotte havia tido um ataque ou que podia ter perdido a sanidade. — Essa
quantidade de espírito tem um preço. Agora ela está, hum, dormindo muito e falando
coisas sem sentido. Mas isso pode mudar. Talvez ela fique bem depois que tiver tempo
para se recuperar.
Olive olhava fixo para o nada.
— Por que ela não podia simplesmente me deixar em paz? Por que insistiu em me
encontrar? Ela nunca deveria ter se arriscado daquele jeito!
— Ela te ama — eu disse. — E acho que Neil também.
Os olhos de Olive se encheram de lágrimas de novo.
— Ah, Neil. Como vou conseguir explicar para ele o que aconteceu?
Parei e a encarei.
— Escuta, o que quer que tenha acontecido, ele vai entender. Ele não vai se
importar com o que outro cara tenha feito com você… quer dizer, ele vai querer acabar
com a raça dele, mas não vai julgar ou usar isso contra você. Ele te ama. Vai te ajudar e te
apoiar. Todos nós vamos.
O desespero dela deu lugar à confusão.
— “Outro cara”?
— É… enfim. — Abaixei os olhos para a barriga crescida dela. — Quer dizer, é
óbvio que teve algum Moroi envolvido. E se ele fez isso contra sua vontade, você precisa
contar pra gente. Ele precisa ser levado à justiça.
Me senti ridículo por usar a expressão “ser levado à justiça” numa cidade com ar de
Velho Oeste, mas o olhar desorientado de Olive dizia que ela não ligava.
— Não, não. Você… você não entendeu. Você não entendeu nada.
— Então me ajuda — eu disse, segurando suas mãos. — Me ajuda a entender pra
ajudar você. Prometi para Charlotte que ajudaria.
— Adrian? É você?
Não reconheci a voz imediatamente e virei para ver quem era. Tínhamos andado ao
acaso e o lugar onde paramos nos dava uma boa visão das “cabanas do distrito da luz
vermelha”. Outro Moroi estava saindo e, pelos seus passos cambaleantes, tinha bebido na
floresta.
— É você mesmo! — exclamou o homem, triunfante. — Eu sabia!
Depois de mais alguns segundos, o reconheci.
— Tio Rand? — perguntei, incrédulo.
Ele caminhou até nós e sorriu.
— Em pessoa.
Mal conseguia acreditar. Tinha passado a achar normal todo tipo de acontecimento
fantástico e extraordinário. Batalhas de espírito? Sem problema. Minha mulher se
transformando num gato? Claro, vamos lá. Encontrar um familiar em que eu não pensava
havia anos não deveria me deixar tão espantado. Rand Ivashkov era o irmão mais velho
do meu pai, alguém que não via desde a infância. Rand não havia sido deserdado — não
oficialmente, pelo menos —, mas desde cedo tinha ficado claro para mim que todo
mundo preferia que ele não estivesse por perto. Meu pai assumira as responsabilidades
dele na Corte e enviara Rand para fora do país em missões simples apenas para mantê-lo
afastado. Uma vez, quando me meti em encrenca numa festa ilícita na adolescência, minha
mãe insistira para que meu pai pegasse leve no castigo. “Afinal”, ela tinha dito, “ele não é tão ruim quanto o seu irmão.”
Ele só traz problema, tia Tatiana murmurou. Uma desgraça. Se preocupa mais com mulheres
e vinho do que com a honra da família.
Não parece muito diferente de mim, admiti.
Ela riu com escárnio. Até parece. Sua família nunca te mandou pra longe para te manter fora
do caminho.
Da última vez que soube, Rand estava em algum lugar na Europa. Definitivamente
não esperava encontrar meu tio no norte de Michigan.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei.
— O mesmo que você — ele disse, dando uma piscadinha.
Ele tinha os mesmos olhos verde-escuros que eu e seu cabelo castanho trazia alguns
fios brancos, embora não fossem nada perto dos que meu pai tinha. Talvez uma vida de
vinho e mulheres fosse menos estressante do que uma vida respeitável no Conselho
Moroi. Rand era alto, mesmo para os nossos padrões, e precisou se abaixar para encarar
Olive, fazendo-a recuar para perto de mim.
— Ela é linda — ele disse. — Estou vendo que você também está fazendo sua
família paralela, hein? Também tenho alguns. Essas dampiras procriam feito…
— Não é nada disso que você está pensando — interrompi, já cansado de explicar.
— Eu não… quer dizer, Olive é só uma amiga que vim visitar.
Tio Rand se empertigou.
— Então ela está disponível? Não a tinha visto por aí…
— Não — eu disse, entredentes. — Ela não está disponível. Escuta, é bom ver você
e tudo mais, mas essa realmente não é a hora nem o lugar. Tenho coisas a fazer.
Comecei a me virar, indicando para Olive que devíamos voltar para a cabana de
Diana. Para o meu espanto, Rand segurou meu braço e me fez dar meia-volta. De perto, o
cheiro de vodca vindo dele quase me derrubou.
— Deixa disso! — ele disse, inflamado. — Você parece um esnobe como o resto
da sua família. Seu pai e a santíssima esposa dele sempre agiram como se eu não fosse
bom o bastante para ficar perto de vocês. Mas olha só você agora. Está aqui, assim como
eu. E ouço de tudo sobre você… mas você me vê julgando? Nós temos muito em comum.
Puxei o braço para me soltar.
— Disso eu discordo.
— Você é mesmo igual a eles! — Ele avançou na minha direção com passos
trôpegos pela bebedeira. Não tinha certeza se ele estava tentando me bater ou só me puxar
de novo, mas não havia como saber. Uma sombra alta de repente surgiu entre nós e o
acertou com um gancho de direita. Ergui os olhos e encontrei Dimitri encarando meu tio,
que agora estava estatelado na grama, com uma expressão forte de repugnância. Rose,
Sydney e Lana vieram correndo até nós.
— Que droga está acontecendo? — Rose exclamou.
— Obrigado — eu disse para Dimitri. — Mas acho que a gente não precisava de
uma intervenção tão forte. Estava me defendendo bem.
— Ele é um animal — Dimitri grunhiu. — Não devia estar aqui.
— Bom, acho que… — Parei e reconsiderei as palavras de Dimitri. — Você o
conhece de algum lugar?
Dimitri me encarou.
— Sim. E você?
— Sim — eu disse. — Ele é meu tio, Rand Ivashkov.
— Ah, é? — A expressão dura de Dimitri não mudou. — Ele é meu pai.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Bloodlines - O Circulo Rubi
VampiroDepois que Sydney Sage escapou das garras dos alquimistas, que a torturaram por viver um romance proibido com Adrian Ivashkov, o casal passou a viver exilado na Corte Moroi. Hostilizada por todos ao seu redor por ser uma humana casada com um vampiro...