Prólogo

12 0 1
                                    


Dante procurava furioso, o seu opúsculo de língua. Perdido, na imensidão da sujidade e da desorganização, praguejava acanhadamente e em surdina. Não era muito dado á arrumação e, acentuava-se esse defeito em situações de nervosismo. Procurara debaixo da secretária desbotada e manchada, nas prateleiras anárquicas, até mesmo nos confins do seu quarto, melhor dito, da sua pocilga. Tivera sucesso, no entanto, em encontrar um pedaço de bolacha bolorenta e grudante, de cor mesclada e pouco apetitosa. Ingerindo-a aos solavancos, sem reflexão, devido á sua indolência. Achava-se neste desespero há pouco mais de vinte minutos, convencendo-se gradualmente da sua perdição. Iria ser avaliado no dia seguinte, e dedicara-se descomedidamente no Resumo do Padre António Vieira, desleixando-se na leitura do mesmo. Não era um aspeto inerente ao seu caráter deleitar-se na preguiça e deixar o trabalho perecer. Sempre fora trabalhador e dedicado, mas as recentes reflexões sobre o pouco impacto que a genialidade teria num futuro próspero, fizeram-no amolecer. Compenetrou-se da ideia de que o sucesso era definido não pelo esforço mas sim pela ignorância, e que mais facilmente se encontravam os desprezíveis no topo da sociedade e os talentosos na miséria, do que o contrário. Estes pensamentos eram influenciados pelo quotidiano irrascível e pelas falácias imoderadas e gananciosas, que era sujeito a escutar calado. Era forçado a ter respeito por criaturas que se deleitavam com simpatias dissimuladas e dotadas de uma grande virtude: a ignorância. Era forçado a conviver com pessoas apreciadas pelas suas posses e pela sua condição social invés de pela sua personalidade. Habituara-se, no entanto, a viver reconditamente, isolando-se, enclausurando o seu espirito critico, as suas sinceras palavras, como uma forma de se proteger e de se glorificar.

Parou de pensar e enxugando as lágrimas de frustração, abriu a janela, afastando as pálidas bambinelas algodoadas, deixando-se perder na brisa primaveril, amolecendo gradualmente. A sua casa, o seu apartamento, erguia-se numa planície urbana estéril, e permitia observar o mundo de uma perspetiva humilde. Dividia-se em 4 pequenas divisões, um quarto indefinível - o seu - coberto de uma cor maculada, uma cor que já fora branca luzidia e que nos dias de hoje se assemelhava a um cinzento mortiço. Um tom refletor da vida de Dante. Uma casa de banho pestilenta e pouco frequentada, danificada com o descomedido vapor de água e abarcante de dois móveis enfezados- uma sanita e um lavatório. Uma cozinha humilhante e ridícula, com pouco mais que um fogão e um frigorífico. E por fim, uma saleta que ultimamente renegava, devido aos desentendimentos do pobre rapaz com sua mãe.

Dante olhava, langorosamente, prostrando-se de seguida no seu mórbido leito, repensando nos imagináveis sítios onde pudera ter abandonado o seu trabalhoso opúsculo. Passara grande parte da noite anterior, no seu quarto. Refugiando-se por vezes na cozinha, para que se pudesse encontrar a par das recentes notícias relacionadas com política e emitidas com pouca qualidade. Repensava e repensava, apercebendo-se do ardor nos seus olhos. Talvez alguma poeira se tivesse alojado nestes, raciocinou. Levantou-se com o intensificar do prurido, arrastando-se sem convicção na direção do espelho mais próximo, que por sinal se encontrava na casa de banho. Apesar de este se encontrar embaciado, conseguiu discernir um olho aleijado e inchado. Adquirira uma cor levemente rosácea, e juntamente com a vista direita concebera uma aparência facial cómica, uma vez que esta possuía um tom azul ao qual se juntava a corresponde contrastiva córnea alabastrina. Lavou-os e após um breve prélio, deixou de sentir qualquer prurido. Efetivamente, detritos que, neste momento, se encontravam no lavatório sebento, tinham-se instalado na sua vista. Sorriu e reparou no resto da sua face. Possuía um nariz romano, uma boca esguia com lábios gretados e descuidados que esboçava um sorriso discreto e sigiloso. A sua pele estava constantemente ressequida e áspera, complementando-se com um buço grosseiro e saloio que se assemelhava ao seu cabelo crespo, negro e mal lavado, no feitio e no tom. No seu conjunto, retratava um rosto aceitável e corriqueiro para uma pessoa indiferente e humilde como Dante. O seu corpo, pensava, já não era tão aceitável. Era franzino e disforme. Adelgaçado por natureza e entristecido por pensamento. Nunca fora trabalhado e favorecido e, isso, visualizava-se facilmente. Era alongado e não possuía músculo significante. Resumidamente, era um rapaz tísico, nervoso e incauto.




Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Dec 08, 2017 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

DanteOnde histórias criam vida. Descubra agora