Era uma noite quente de verão. Havia chovido e uma leve bruma pairava no ar. A lua flutuava entre as estrelas e as nuvens esparsas que ainda estavam no céu. No canto do quarto desarrumado estava Jofre, sentado no chão abraçando as pernas, em uma de suas mãos uma faca, seus olhos não conseguiam parar de olhar o sangue que ainda escorria da lâmina, por entre as manchas de sangue ele podia ver seu próprio olho e através dele lhe passava pela mente as imagens do que há pouco ocorrera naquele mesmo quarto. A faca cortando o ar, a mão que segurava um braço fino de mulher, a cabeleira loura que dançava no ar embalada por gritos de terror e o corpo branco de mulher sendo perfurado pela lâmina afiada.
Sobre a cama estava Marília. Suas pernas dobradas, sua cabeça acomodada entre os travesseiros e seus braços abertos como que a espera de seu homem. De uma pequena abertura em seu abdômen ainda escorria seu sangue, que descia pelo corpo, molhava o lençol e pingava no chão do quarto.
O relógio marcava três e trinta e quatro, Jofre se levanta caminha até a beira da cama e desliza sua mão suavemente por sobre o rosto de Marília, que mostrava uma expressão de tranquilidade e paz que Jofre nunca tinha visto antes, seus dentes perfeitos estavam levemente à mostra como se tentasse expressar um sorriso, uma lágrima escorre pelo rosto de Jofre, ele respira fundo, solta a faca, que cai no chão, pega as pontas do lençol sobre o qual Marília estava deitada e começa embrulhar suavemente o corpo da mulher que acabara de matar. Cobriu as pernas, passou seus dedos perto do ferimento que provocara a morte de Marília e cobriu o abdômen, cobriu os seios e enrolou os cabelos louros no lençol, deixou o rosto à mostra por alguns segundos e depois o cobriu também.
Jofre segue até o trapiche com o corpo de Marília em seus braços. Caminha até à beira e lá repousa o corpo de sua amada sobre os troncos de madeira já apodrecidos que formavam o trapiche. Vai até uma das vigas de sustentação e pega uma velha corda que amarrava os barcos, mas que agora serviria para amarrar o corpo daquela mulher. Cuidadosamente passa a corda em torno das pernas de Marília. Depois pega uma âncora esquecida e amarra na outra extremidade da corda, senta-se ao lado do corpo para descansar um pouco, repousa sua cabeça entre seus próprios braços, que estão estendidos e apoiados em seus joelhos dobrados. Suas mãos repousam em sua nuca.
- Não adianta Jofre, nem assim você vai se esquecer de mim.
Jofre levanta sua cabeça, olha para o corpo imóvel de Marília.
- E você sabe disso. Eu sempre vou estar presente cada vez que beijar uma outra mulher, cada vez que suas mãos procurarem os seios de uma outra.
- Não Marília, você não vai mais ficar aqui. Você nunca mais vai me atormentar.
- O que é isso Jofre? Agora você tá renegando o grande amor que você sempre disse que sentiu por mim?
- Você transformou este amor em ódio. Cada vez que você olhava pra outro homem. Cada vez que eu via em teu rosto um sorriso de sedução para outro, matava o amor e nascia o ódio dentro de mim.
- Foi você que quis assim, Jofre.
- Como que eu poderia querer que a mulher que eu amava me traísse?
- Era o que parecia. Cada vez que você me impedia de sair... A cada crise de ciúme besta. Aumentava em mim a vontade de ter outro homem me tocando. Outro homem me fazendo sentir o prazer que eu não sentia contigo.
- Para. Eu não quero ouvir isso.
- Não paro. E sabe por quê? Porque você me faz passar por coisas que ninguém tinha me feito passar antes.
- Eu te tirei da rua, da sarjeta.
- E daí? Desde quando isso te deu algum direito sobre a minha vida? Você sabe que no início eu tava disposta a ficar do teu lado, Jofre. Mas você foi me fechando num ciúme que me sufocava mais e mais a cada dia. Você sentia ciúmes de todo mundo.
- Todos os homens te queriam. E tu sabia muito bem disso.
- Assim como eu queria todos eles.
- Isso é atitude de puta...
- Eu sou puta, Jofre! Eu sempre fui.
- Não é verdade.
- Claro que é.
- Tu não foi puta quando tava comigo.
- Não? Pergunta pro Pedro.
- Que tem ele?
- Eu não acredito!
- Pergunta pra ele, então?
- Por quê, isso?
- Por que com ele eu sentia prazer e contigo eu sentia nojo...
- Mentira tua.
- Nojo da tua boca, nojo das tuas mãos e nojo de ti. O que pra ti era prazer, pra mim era sofrimento e desespero.
- Cala a boca!! – Num grito desesperado, Jofre se lança de encontro a velha âncora que estava amarrada ao corpo de Marília e a atira ao rio, o mesmo rio que serviria de túmulo para o corpo de sua amada. Depois, chorando, cai de joelhos sobre o trapiche. O pequeno cão se aproxima e lambe os braços estendidos, tentando tirar deles o sangue de Marília que começava a coagular por sobre a pele de Jofre. Ele se levanta e caminha levemente até a praia na beira da água se lava dando ao rio a única lembrança do crime que ainda estava em seu corpo
- Como vai? Meu nome é Marília, qual o seu?
FIM
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Marília
Mystery / ThrillerAté que ponto um homem atormentado pelo ciúme consegue manter sua sanidade?