Os Demônios que nos Habitam

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Eu, Francisco Antônio.  Padre da Igreja do Sagrado Coração de Maria, cheguei a Farroupilha em uma charrete vinda de Caxias do Sul. Era 28 de Outubro, de 1880. Num final de tarde monocromático daqueles que não importa quanta roupa pesada você vista, o frio penetra pelo tecido adentro até seus ossos começarem a tremer. Peguei minha maleta no banco e desembarquei. Encontrava-me em frente à uma porteira de madeira sem já uma dobradiça, bem castigada pelo tempo. À minha frente se estendia uma estrada reta de areia, ladeada por araucárias que se perdiam entre a neblina úmida e vagante. No final, uma casa rústica de dois andares. Pude sentir no caminho o cheiro de mato fresco misturado com notas de enxofre.
─ O cheiro do inferno. ─ Murmurei. Ele estava ali.
Alguém me esperava na varanda.
─ Padre graças a Deus! Entre, entre! O frio está chegando. ─ Disse a senhora envolta em poncho e lençóis prontamente tomando minha mão e beijando-a.
Antes de cruzar os umbrais da porta, olhei para trás. A porteira já sumira.  Alguns pombos levantavam voo desaparecendo por entre a neblina.
─ Espero que o homem da charrete me aguarde. ─ Pensei. ─ Tudo costuma ser muito rápido.
O lampião fora recentemente aceso. O ar ainda cheirava a querosene e a casa estava imersa em sombras que pareciam vultos bailando uma dança blasfêmica saída dos recantos mais sórdidos dos sete infernos.
─ Que Deus esteja nessa casa. ─ Disse beijando meu terço assim que entrei.
Algumas vozes vieram em concordância. Tristes. Sussurradas nas sombras.
A senhora apresentou-me seu marido e algumas pessoas que ali estavam para acompanhar o exorcismo. Humildes servos do Pai. Pessoas simples. Rurais.
─ Minha menina padre, minha doce menininha...
Meneei a cabeça e com a mão fiz sinal que parasse.      ─ Quanto menos falarmos agora, melhor será. Manteremos somente orações.
Fiz meus preparativos em silêncio e em silêncio me entregaram um lampião indicando a porta.  Com ele de um lado e a bíblia sagrada de outro entrei no aposento ao girar da maçaneta pelas mãos enrugadas do marido daquela doce senhorinha.
─ Fiquem aqui.  Tranquem a porta e, sobretudo não entrem. ─ Voltei à cabeça para frente e a luz tremulante do meu lampião desnudou um quarto bem simples. Uma cama de solteiro, um crucifixo preso na parede verde descascada e uma bíblia já aberta no criado mudo. Aquele mesmo cheiro que eu conhecia bem.
Uma jovem pálida ao extremo, com proeminentes olheiras, feridas pela face, lábios e ponta dos dedos, estava postada na cama com o olhar fixo no teto. Mordia os próprios dedos já em carne viva.
─ O Senhor é meu pastor e nada me faltará.  ─ Disse com o meu crucifixo em riste. ─ Faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome...
Então a jovem subitamente replicou com uma entonação que não era familiar a sua idade nem ao seu sexo. Uma voz rouca vinda de muito longe:
─ Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum. Porque tu a que anda nas sombras estás comigo.
E rindo com escárnio encarou-me de olhos esbugalhados. Pude ver o fogo do inferno queimando por dentro de sua retina.
─ Sete submundos estão em mim. Sete anos levariam para nos afastar.  Sete vidas purgaremos e são sete as chagas que deixaremos.
Já ouvira aquele texto antes. Seis vezes antes. Em diferentes anos. Mas dessa vez eu não falharia. Ele não levaria mais uma alma. A última. Se eu conseguisse salvar apenas uma, meu trabalho não teria sido em vão.
─ Olá padre. –Disse o demônio. ─ Veio falhar mais uma vez?
─ Dessa vez não levará esta alma. Saia desse corpo pelo nome de Jesus! Volte para onde habitas! Volte para a escuridão! ─ Exorcizo te, omnis spiritus immunde, in nomine Dei...
Mas o maligno sem que eu esperasse com uma força sobrenatural saltou da cama e empurrou-me contra a parede. O lampião em minha mão caiu espalhando querosene que logo foi aceso pelo fogo. Em breve o quarto todo seria só chamas. Então, instintivamente coloquei a mão dentro do bolso da minha batina sacerdotal a procura da hóstia... A hóstia dada em casos gravíssimos de exorcismo para aliviar o corpo e a alma do hospedeiro. Em casos onde a morte fosse iminente.
─ Não irás levar a última alma! ─ E dizendo isso enfiei o pequeno disco de farinha e veneno na boca da pobre menina. Em breve estaria liberta. Sua alma descansaria nas veredas do paraíso.
Mais uma vez com uma risada de escárnio o demônio disse:
─ A sétima alma não será esta. Ver-me-ás em você. Para todo o sempre.

 ***

─ Senhor Francisco isso foi tudo que aconteceu?
Mirei bem o cardeal me limitando a confirmar com um aceno de cabeça. Veio especialmente da capital para acompanhar meu caso. Ele e sua comitiva. Estava rodeado por outros padres que sorviam meu relato com claro interesse. A cúpula da igreja católica estava lá naquela pequena sacristia.
─ Senhor Francisco?
─ Sim Cardeal Lineu.
─ O senhor se ordenou padre quando?
─ Há vinte anos.
─ Tem ideia de onde esta agora?
─ Na sacristia da Igreja do Sagrado Coração de Maria.
Confesso que não entendi o motivo daquela pergunta.
─ Obrigado senhor Francisco. Por hoje é só.
Então o Cardeal voltou-se para o padre Rafael e entregou-lhe o costumeiro recipiente de hóstias consagradas. Era hora das minhas orações. Peguei-as e com um cumprimento e segui para meu catre.
Na saída, pude observar que na porta da sacristia havia um pequeno espelho pendurado. Vi rapidamente meu reflexo, pois algo acima me chamou atenção.  Uma placa onde estava escrito: Hospital Penal Psiquiátrico Dr. S. Freud.
─ Perdão Cardeal Lineu. –Disse interrompendo minha caminhada. ─ Mas... Essa placa acho que esta errada!
─ Sim Sr. Francisco. Obrigado. Vou mandar retirá-la. Volte ao seu quarto. E tome sua medicação.

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