- Pode me servir uma bebida?
- Acabou aquele uísque que você gosta. Como não me deixou o cartão, não comprei outro. Pode ser aquele que fica no canto do bar, mas que quase não te vejo beber dele?
- Pode ser sim, se eu partir hoje para a cerveja, serão várias. Não estou muito legal.
- Problemas no serviço?
- Sim, como sempre. - E já desconversando, prosseguiu: - Não se preocupe, eu mesmo compro meu uísque preferido amanhã. Aproveito a minha hora de almoço para mudar um pouco os ares e sair de dentro daquela empresa.
- Foi alguma coisa grave? - E entregou-lhe o copo, que ele pegou e virou com um desejo incontido à boca.
- Nada demais. Pegue por favor o controle remoto do aparelho de som para mim?
Ligou o aparelho, colocou uma seleção musical relaxante e tentou ignorar o restante da humanidade. 'Poxa vida, que esposa pegajosa com quem ele casara! Sempre com aquele interrogatório interminável... "Como foi?", "Onde é?", "Parece-se com quem?", as perguntas não tinham limites. Ele só queria esquecer aquele dia maldito, de mais cortes na empresa, de mais ameaças de dispensas, de mais cobranças por metas inatingíveis, será que ela não percebia a pressão que ele sofria? Que ele precisava chegar em casa e ter um pouco de paz para beber e relaxar até o sono vir?'
A televisão até estava ligada no outro cômodo onde ela se encontrava. Ela parecia com sua atenção fixada à tela, mas na verdade sequer fazia ideia do que estava sendo exibido. Seus pensamentos estavam perdidos em outra dimensão muito distante dali...
"Será mesmo que ele não consegue enxergar tudo o que eu faço para ele? Cuido dele, da casa dele e dos filhos dele, tá, nossos, mas dele também, com o máximo de carinho possível. Administro a casa e os assuntos familiares de forma que ele não precise se preocupar com absolutamente nada do que ocorre nas rotinas aqui da casa. Simplesmente apresento tudo relativo ao nosso lar resolvido para ele, ou dependendo apenas de um mísero sim ou não de sua parte, e quando faço uma pergunta inofensiva sobre seu trabalho, recebo dele um olhar de desprezo que me desconcerta por inteira, como se eu fosse uma alcoviteira querendo bisbilhotar sua intimidade... sou sua esposa, mas parece tão difícil que ele perceba isso, poxa vida! Não vou chorar desta vez, não vou chorar..."
"Nem quero pensar nas nossas intimidades então. Já me faz lembrar da frieza e do descaso dele para comigo de uns tempos para cá. Ah! Quanta saudade daquele homem carinhoso, um verdadeiro cavalheiro no convívio social e um touro insaciável entre quatro paredes. Buscava a todo custo o meu prazer, e era duas vezes delicioso fazer amor com ele; uma pela sensação prazerosa de me entregar inteira para ele, e outra de ver o delírio satisfatório em seus olhos ao me ver gritando descontrolada diante da chegada do clímax. Hoje não vejo nem sombra deste homem em minha cama. Nas raras vezes em que me procura, está alterado pelo álcool, e vê-se que não tem o menor desejo por mim, mas que está simplesmente satisfazendo uma de suas necessidades fisiológicas, como almoçar ou beber um copo com água... eu me olho no espelho todos os dias, não estou com o corpo tão diferente de dez anos atrás, sou vaidosa, me cuido, mas parece que me deito com um bloco de gelo e não com o homem que jurei amar até que a morte nos separasse... não vou chorar desta vez, não vou chorar..."
Ainda estava absorta em seus pensamentos quando ouviu ele colocar o copo na pia. Passou por ela e a avisou entredentes que iria se deixar. Mais uma noite como tantas outras nestes últimos anos. O que estaria acontecendo? O que ela poderia fazer para reverter aquela situação, se é que ainda tivesse algo a ser consertado naquela relação hoje tão conturbada?
Por mais que tentasse se controlar, seus olhos já estavam vermelhos, quando viu a notificação de chegada de mensagem. Um número até então desconhecido. Tentou ver se tinha alguma foto no perfil. Não, não poderia ser verdade. Os anos haviam passado, mas ela sabia bem quem ele era. Trabalhava numa autopeça perto de onde ela também trabalhara anos atrás, e conversavam vez por outra quando ambos estavam em horário de almoço, nada mais que isso. Sim, ela sabia que ele a cobiçava às escondidas, já o surpreendera olhando para ela principalmente quando ousava no comprimento da saia ou no tamanho do salto, mas daí a ter seu número? Como isso havia acontecido? Responderia à mensagem ou não? Iria responder apenas para saber como conseguira seu número. Assim o fizera. Ele primeiro agradeceu de ela ter respondido, pediu desculpas pelo horário, mas saía dum curso que estava fazendo somente naquele horário, e dentro do local o telefone celular era desencorajado. A forma de ter conseguido o número não poderia ser mais simples. Ela não se lembrava da Marina, amiga em comum dos dois? "Maldita! " - Ela pensou. - "Ela tem mesmo meu número, saímos até algumas vezes para o shopping, mas não poderia ter dado a ele sem sua autorização. Bem, agora o estrago estava feito. Era continuar a conversa e ver até onde aquilo iria ou cortar ali, e bloquear seu número." Enquanto resolvia, o marido ressonava profundamente no quarto ao lado.
Optou pela primeira. E descobriu como o tempo passa rápido, as coisas acontecem num ritmo acelerado e ela parecia fechada numa redoma de vidro, apodrecendo em vida. Quanta coisa ele mostrara a ela que ela sequer tinha consciência de que tinha se dado, e daí para tomarem um chope perto do antigo trabalho de ambos foi questão de tempo. Ele parecia mais envelhecido, mas o sorriso permanecia o mesmo, e o jeito que ele desviava o olhar quando ela o encarava era ainda encantador. Era como se ele deixasse claro que desejava muito ela, mas que só daria o primeiro passo quando ela tornasse explícito que também queria estar com ele. Pois bem, que assim fosse. E descobriu que o problema na cama em casa definitivamente não era com ela. O prazer explodia forte quando tocada nos locais e com o carinho certos, a fragrância masculina ainda a excitava muito, e mesmo o hálito de álcool poderia ser afrodisíaco quando conjugado com carinho e real desejo nela...
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COISAS DE CASAL (PENSAMENTOS)
Short StoryOnde as crises constantes podem levar um relacionamento aparentemente sólido?