Em umas das minhas aulas sobre o velho mundo, descobri que existiram criaturas vivas que eram capazes de rasgar os céus com membros modificados, algo como braços que nasceram com rêmiges. Segundo o Sr. Arthur, eram muito diferentes dos abutres feitos de metal que vemos passar por nossas cabeças todos os dias, queimando o ar à medida que o escurece. As criaturas vivas que chamavam de aves, eram silenciosas e graciosas. Os membros de carne batiam de acordo com os batimentos de seus pequenos corações e o ar à sua volta permanecia o mesmo independente de quantos passavam.
Algo como deveria ser a vida.
Os abutres passam tão depressa por nossas cabeças, com seus motores falhos e barulhentos que quase esqueço de puxar o braço de meu irmão rumo a multidão. Ele esperneia e grita engolindo tanta poeira dos pés em movimento pelo pavilhão que tosse descontroladamente, suas pequenas mãos e pés estão arranhados pelo chão e minhas unhas, que se cravam na sua carne sem pena. Ao longe, o alarme toca corroendo os nossos tímpanos e anunciando o evento anual. Solto o braço de Lucas a medida que caio de joelhos no chão e cubro meus ouvidos, a espera de algum conforto. O som penetra em minha carne e chega em meus tímpanos agudo e estridente, como os próprios gênios. É o que fazem para ter nós sob seus pés, implorando por misericórdia e jurando lealdade. Abro meus olhos o bastante para ver um deles subindo no palco improvisado e se esgueirando até um microfone. Os muitos telões ao nosso redor se ligam, projetando o homem de terno que sorri sarcasticamente no palco de madeira. Quando ele abre a boca para falar, o alarme cessa.
— Senhoras e senhores, comuns. Estamos aqui para mais um evento anual — sua voz soa numa animação forçada e um nojo oculto. Odeia esse evento tanto quanto nós, os comuns. Gente diferente o bastante para serem tratados como nada.
Outro dia, Sr. Arthur nos disse que os séculos que se antecederam a estes, os de nossos tataravôs, as pessoas ainda podiam andar livremente pelas ruas, sem toque de recolher ou restrições de comunicação. Nesses tempos agora remotos, não havia distinção das pessoas pela mutação que permite uma elevação na sua capacidade cerebral, assim como não havia pessoas como nós, jogadas nas periferias de cidades destroçadas pelo tempo como ratos, limpando a bagunça e servindo os gênios como se fossem deuses indestrutíveis. E de fato são.
O homem de terno diz mais algumas palavras fruto de um discurso decorado. Suas mãos gesticulam rapidamente como uma marionete. Ele sorri para nós e sua língua molha seus lábios, afastando-se do microfone para sussurrar no ouvido de um homem que surge ao lado dele. Sinto meu irmão se arrepiar do meu lado, agora mais calmo. Aperto sua mão para lhe dar segurança. Já sabemos o que vem depois.
— Isso é ridículo — Lucas olha para os lados temendo que alguém o escute.
Eu apenas dou de ombros, cansada demais dos trabalhos na fábrica para repreender meu irmão.
— É apenas uma exibição de poder, Lucas, não tem porque ter medo — limpo meu suor com as costas das mãos. A temperatura começou a subir consideravelmente. — Eles ainda precisam de nós para o trabalho sujo.
— Não é medo — ele empina o nariz encarando o gênio no palco. Seu rosto se contrai por um segundo e eu vejo que ele mente. — Eu apenas não vejo porque vir a Pinemonds todos os anos e tentar concertar o que já está destruído — abro a boca para argumentar, mas ele me corta. — E não adianta me dizer que é para nos favorecer porque não é. Nós derramamos sangue por eles.
Lucas tem apenas oito anos, um menino muito inteligente para a idade. Ele é bom com palavras, esportes e cálculos. Não há muitos como ele em Pinemonds, alguns não sabem soletrar o próprio nome. Desde que o governo voltou a ser uma monarquia, os benefícios para os comuns acabaram. O rei simplesmente decidiu que não havia porque pessoas como nós irem para escola e perderem seu tempo com aulas ao invés de atrás de uma máquina, isso só foi há alguns anos atrás. É por isso que, quando Lucas nasceu e aprendeu a ler sem uma única aula, meus pais e eu acreditamos num futuro maior para nós, afinal, ser a família de um gênio nos garantiria riqueza. Não demorou muito para que nossas esperanças fossem esmagadas pelo exame de QI, em que descobrimos que Lucas usa apenas 20% de seu cérebro, não muito maior que o nosso.
— Só se certifique de correr bem.
Ele assente.
Quando o homem volta a falar, seu semblante já está mais neutro e animado. Seu cabelo loiro brilha pela luz que o favorece e seus olhos piscam mais que o normal, me concentro em suas mãos e percebo. Ele está controlando a luz em volta de si.
— Para um reino melhor e evoluído, o rei planeja este evento para cada província todo os anos e este não será diferente. Cada fábrica, empresa e comércio precisam ser renovados com eficiência ou construídos, precisamos de mais trabalho — ele sorri orgulhoso de si mesmo e faz um gesto para o homem ao seu lado. — Podem começar.
E então eu corro. A primeira explosão corta o ar como uma faca afiada, me fazendo engolir terra e madeira. A temperatura esquenta mais a medida que prédios surgem do chão e viram arranha-céus, as pedras voando ao seu redor me fazem o assemelhar a um monstro grande e gordo, sugando a pouca vida que a cidade tinha. Mais pó entra pelos meus pulmões e fica difícil de respirar, mas ainda consigo desviar de um pedaço de madeira que se projeta no ar e voa pela cidade, provavelmente indo para a fábrica de móveis. Meus pés vacilam e eu procuro respirar pela boca, consciente do ar mortal a minha volta. Mais fumaça surge e eu me protejo embaixo de um banco, procurando Lucas com meus olhos semicerrados.
As pessoas correm e esbarram umas nas outras, como animais assustados. As nuvens ficam mais pesadas conforme o homem no palco mexe as mãos. Consigo ver suas veias saltando pelo esforço, como cobras se preparando para o bote. Ele enrola a língua como se estivesse prestes a falar, mas o que vejo são mais explosões surgindo pelo ar, cada lugar que conheço sendo substituído por construções enormes, brilhando a medida que o sol se apaga, sendo drenado por algo sem vida. Cubro os olhos para não ver, mas de alguma forma consigo sentir. Corpos jogados pelo chão machucados ou sem vida, crianças chorando e se esgueirando pelas pernas de seus pais desmaiados. Assim como nos mandam cartas agradecendo pelos nossos serviços e nos dizendo que somos preciosos, também nos fazem temer, tendo eventos como esse para ficar em nossas lembranças até crescermos e termos voz, até a consciência de que não somos como eles nos atingir e desejarmos nunca ter nascido, ficando mudos até a hora de nossa morte.
O céu acima de nós desaba em lágrimas, pesado pelas mortes de hoje e assustado pelo o que o mundo se tornou. Ele grita e se esperneia, causando mais desabamentos e mais dor. O sinto na minha pele, uma ardência leve que coça e me faz se esconder mais, como a medrosa que sou. Sr. Arthur nos disse que o gigante acima de nós era diferente também, que quando ele chorava, suas lágrimas nos serviam de conforto refrescando nossas almas. Eu queria dizer a Sr. Arthur que ainda nos refresca, que não perdemos a única coisa natural que tínhamos, mas quando o céu novamente grita e a água cria brotoejas na minha pele, percebo.
O céu se tornou violento porque fizemos dele assim. Os gênios fizeram.
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Mentes sombrias
Teen FictionEm um mundo pós-apocaliptico em que os humanos possuiam poderes para dominar os céus, uma mera garota operária não era nada. Elisa não era exatamente do tipo de garota que ficava de boca fechada e abaixava a cabeça. Não. Elisa era do tipo de garota...