3 - Nada é pra sempre

32 2 0
                                    

Chego atrasada no mercado, graças a minha "agradável" conversa com aquela menina. Que ótimo, hora de esquecer isso de uma vez! Depois de guardar minha mochila no armário, vi minha equipe em uma rodinha dentro do que chamávamos de "salinha do esporro", que era uma espécie de sala de reuniões/escritório da dona Vilma. A sala era metade vidro, metade alvenaria, o que permitia que qualquer um visse o que se passava lá dentro. Depois de dois anos trabalhando nesse mercado, aprendi a ler cada expressão e decifrar se quem estava lá dentro, estava ganhando um esporro ou um aumento e dessa vez a cara do pessoal não estava nada boa...

- Ah, Gisele! Que bom que resolveu vir trabalhar hoje! Achei que não viria mais. - dona Vilma falou com uma ironia de dar nojo - Junte-se a nós, estava prestes à dar um comunicado importante.

Permaneci em silêncio como estava, e fiquei de pé encostada na meia parede, do lado do Gabriel - que não parecia nada bem, mas se acaba o atestado, tem que voltar ao trabalho, fazer o que.

"Você está horrível" - Gesticulei com os lábios.

"Não mais do que você" - Ele gesticulou de volta, com cara de deboche. Sorri.

Depois de revirar alguns papéis, dona Vilma respirou fundo e começou o discurso, nos olhando com firmeza...

- Se preparem, porque podem haver alguns cortes na empresa. - Como ela fala isso assim, na lata? - A rede de supermercados Napoleon está em crise há um tempo, como vocês sabem, já foram fechados dois supermercados da rede, e não se surpreendam se esse for o próximo. Com isso o emprego de todos nós está em jogo. Estou comunicando isso a vocês porque, procurar outras oportunidades pode ser uma boa opção nesse momento. E muito cuidado com os vacilos, nessa situação os diretores ficam doidos pra arrumar demissões por justa causa. Menos gente pra receber acertos. E mais uma coisa, não quero ouvir borburinhos sobre esse assunto, então cada um que faça seu trabalho de forma digna enquanto ainda está aqui, e resolvam suas próprias vidas! Estão dispensados.

Minha mente parou por uns segundos tomando dimensão do problema, antes de começar a questionar... Acabei de me mudar, dívidas de cartão, empréstimo da entrada do apartamento, fora as parcelas...

- Eu vou ser o primeiro a ser cortado. - a voz do Gabriel interrompeu meu colapso nervoso mental - Com certeza, vou ser o primeiro.

- Como pode ter tanta certeza disso?

- A Vilma me chamou pra conversar antes da reunião, disse pra eu ficar esperto, e que eu sou o único que não leva nada disso aqui a sério - nisso ela estava certa.

- Sério? Mas o que você está pensando em fazer se sair daqui?

- Ah, eu ainda não sei, mas a vantagem de sair agora é que tenho mais chances receber os meus direitos, então vou ter tempo o bastante pra pensar no que vou fazer, depois que eu sair.

- Como assim "se você sair agora, recebe todos os direitos"? Todo mundo que for mandado embora vai receber.

- Gisele, acorda...sabe o que é isso? Falência! Dois mercados fechados, cortes na empresa... Sério, quem for mandado embora agora tá no lucro, porque se a empresa declarar falência, quem ficar não recebe nada.

- Eu não tinha pensado nisso...

- Claro que não tinha pensado nisso, pra isso você ia precisar de um cérebro, e como você não tem...

- Idiota! - Esmurrei o ombro dele - Pois é, se eu tivesse um cérebro talvez teria escolhido um amigo melhor - dei língua.

- Essa doeu... sério, você é cruel...

- Ah Gabriel, cala a boca vai...e vamos voltar trabalhar, pelo menos por enquanto.

- Gisele! - Ouvi a voz grossa da Dona Vilma me chamando. - No escritório por favor.

Encarei o Gabriel na esperança de que um olhar dele me desse pistas do assunto que a Dona Vilma queria tratar comigo. O olhar dele não disse nada, mas percebi quando ele segurou meu braço e sussurrou...

- Fica na boa... - Sinto muito Gabriel, mas esse pedido não será atendido, impossível ficar na boa agora...

Entrei no escritório, fiquei encarando a cara amarrada da Dona Vilma, não consegui evitar. Ela mandou que eu me sentasse, e enquanto me sentava ela revirava alguns papéis. Levei um susto discreto quando ela começou a falar...

- Gisele, você já deve imaginar o motivo, pelo qual te chamei. Não podia deixar você trabalhar o dia todo pra depois te dar essa notícia...

- Vou ser cortada... - Interrompi.

- Isso - Dona Vilma afirmou respirando fundo, me encarando como se estivesse fazendo um esforço sobre humano para demonstrar um pouco de compaixão - Eu preparei um discurso e tanto, mas vejo que é desnecessário.

Dona Vilma me deu diversas instruções, papéis pra assinar, contratos pra ler, me explicou toda a burocracia, mas na minha mente uma sequência de palavras se repetia... "Por que fui a primeira? Empréstimo, Dívidas de cartão, Parcelas do apartamento, parcelas dos móveis". Me esforcei para prestar atenção nas orientações da Dona Vilma, mas estava praticamente impossível deixar minha cabeça em silêncio! Melhorei um pouco quando lembrei das palavras do Gabriel "Quem sair agora, tá no lucro"...

Depois de seguir a risca todas as orientações e cumprir toda parte da burocracia, me despedi de todos da equipe, mas não achei o Gabriel. Saí do mercado meio desorientada, dessa vez não estava feliz por ir pra casa. Vejo o Gabriel em frente a padaria que ficava ao lado do mercado, enquanto me aproximava dele, comecei a imaginar meus dias sem as palhaçadas dele, fiquei mal.

- Tcharan! - disse me estendendo a mão com um sonho de doce de leite enorme! - Não posso deixar você ir embora, sem dar uma última mordida no sonho de doce de leite!

- Achei que não viria se despedir de mim...

- Até pensei em não vir, tinha muitas outras coisas pra fazer sabe... Mas mudei de ideia quando lembrei do sonho...

- Ah claro, foi por causa do sonho!

- Exatamente!

Comemos o sonho, conversamos tanto e rimos tanto que parecia mesmo uma despedida e isso era estranho.

- Você tem que voltar...

- É eu tenho. - Ele fez uma cara estranha de descontentamento.

Nos olhamos sem saber muito o que fazer, até que tive uma atitude meio incomum pra mim. De supetão pulei no pescoço dele, e dei um abraço tão apertado que nem deu vontade de soltar...

- Obrigada! Por me ajudar a sobreviver cada dia naquele mercado, obrigada por tudo. Vou sentir saudades...

Esperei ele fazer piada com minha cena digna de novela mexicana, mas ao invés disso, ele me abraçou mas forte. Eu quis chorar, mas me segurei, seria vexame demais.

- Eu que agradeço. - Disse com uma voz carinhosa e me beijou na testa. - Foi você que me salvou todos os dias ali. Vai ser difícil agora sem você...

- Ai que papo estranho...

- Verdade, quase rolou uma lágrima aqui. - Rimos de nós mesmos.

Rimos e nos despedimos. Observei meu melhor amigo voltando para o circo dos horrores, apelido não tão carinhoso que demos ao mercado. Ao perder o contato com ele eu estaria sozinha... De novo... Pois é, hora de ir embora.

Refém Onde histórias criam vida. Descubra agora