Hóspede Indesejado

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Sempre que ele vinha era uma tortura. Vinha sempre na mais inconveniente das horas, como se a escolhesse criteriosamente. Certa vez ele apareceu lá pelas onze horas da noite com aquele papinho de sempre:
 
"Olá, velho amigo! Vim aqui lhe visitar! Afinal, faz tanto tempo que não nos vemos..."

Tanto tempo é o cacete! Toda semana aquela encarnação de desgraça aparecia na minha porta! Sempre com aquela mesma cara de cu e aquele papinho enfadonho que não acrescentava em nada. Certa vez ele apareceu com aquela barbicha feia que parecia a de um bode, pedindo para usar o meu banheiro. Por uns quinze dias eu não tive coragem de voltar naquele banheiro, mas nem que a minha mãe voltasse dos mortos.

Mas eu nunca neguei favores a ele, e aliás, sempre tentei relevar o incômodo e disfarçar meu descontentamento. Mas era um desgraçado, e eu o odiava com todas as células do meu corpo. Diabo!

O tempo foi passando, e sempre estava lá ele, à minha porta. Virou minha família. Mas sempre foi aquela presença que eu aturava só por aturar, nunca gostei dele. Era como um tio chato... Ou um primo burro. Mas ele foi se acostumando a voltar, e eu o deixava. Suas visitas  tornaram-se cada vez mais frequentes, e eventualmente, diárias. Quando percebi, já estava até comendo na minha mesa... E pior: Morando comigo!  Diabo!

Com o tempo, aquele incômodo que eu sentia foi crescendo, até se transformar em ira ardente. Explodi. Gritei com ele, xinguei de tudo que era nome, mandei pra casa do... enfim. Coloquei tudo pra fora. Ele disse:

"Você não me quer aqui? Mas foi você mesmo quem me deixou entrar... Agora quer que eu saia? Não faz sentido algum. Não vou embora, pois você só pode estar completamente fora de si."

Fodeu-se. Quando ele disse isso, eu fiquei completamente paralisado. Não porque ele era folgado, ou afrontoso, ou sei lá o quê. Nada disso. Fiquei paralisado, pois o que ele disse era senão uma verdade cruel. Sucedeu-se que não consegui expulsá-lo de minha própria casa. Mas nada é tão ruim que não possa piorar, e tornar-se insuportavelmente horrível. Ele se apossou de tudo que era meu, até do meu quarto. Passei noites em claro sendo corroído de dentro pra fora por aquele suco de puro ódio e frustração, sabendo que ele estava bem ali, quentinho e confortável na minha própria cama. Diabo!

E o tempo passava. Ele tomou conta de tudo, tudo mesmo, minha casa era agora dele. Minha vida girava em torno de seus caprichos, no entanto, brigávamos diariamente. Eu xingava, insultava, chutava, fazia e acontecia... Mas não podia expulsá-lo de lá, pois eu estava amaldiçoado por aquelas palavras.

"Fui eu mesmo quem deixou isso acontecer" -Eu pensava. E eu estava certo, não sabia mais o que fazer.

Uma vez ele mijou na casa toda. Isso mesmo, urinou. Obviamente eu fiquei irado e parti pra cima dele. Dei-lhe um chute naquele rabo, agarrei aquele chifre retorcido e bati a cabeça dele repetidas vezes no chão, até formar-se um pequena poça do sangue profano daquela criatura do inferno. Mas de algum modo ele reverteu a situação. Ele me destruiu, me bateu tanto que fiquei inconsciente. Quando acordei, havia marcas daquele casco duro por todo o meu corpo. Ele disse:

"É melhor você se acostumar, pois quem manda aqui agora sou eu. Sempre que você sentir vontade de me confrontar dessa forma novamente, quero que se lembre deste dia."

Fui derrotado. Cheguei ao mais baixo que se pode chegar no poço do fracasso. Dei-me por vencido e passei a agir como se ele não existisse. Quando ele me provocava eu fingia que não o ouvia. Quando ele quebrava as coisas eu simplesmente as consertava. Quando ele urinava nas coisas eu simplesmente as limpava ou substituía. Se ele não me deixava dormir na minha própria cama, eu simplesmente dormia no chão. Se ele me derrubava, eu me levantava e caminhava. Diabo!

Internalizei toda aquela situação ridícula, e tentei viver a vida. Voltei a trabalhar, a falar com as pessoas e a ser ativo. Sucedeu-se que chegou o dia em que ele percebeu que não era mais um estorvo para mim. Aquele foi o primeiro dia em muito tempo que senti alguma coisa próxima de "felicidade".

"Vejo que já não represento mais nenhum infortúnio a você, velho amigo. Então veio o dia em que finalmente nos separamos. Adeus, amigo." -ele disse.

Mal pude me conter de tanta satisfação.

"Adeus, Satanás." -Respondi, e com um aperto de mão selamos a despedida. Diabo!

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