— Droga de joelho.
Pisei em falso e quase caí. Desde o acidente não era mais o mesmo. Gostava de correr, andar de moto, zoar com o pessoal. A mãe disse que terapia não me faria mal. Vou ao consultório da Dra. Maria da Penha duas vezes por semana. Ia três, mas ela diminuiu as sessões, segundo ela eu estava me recuperando bem. Bem o caralho. Ela é que enjoou de me escutar. E olha que eu nem vou comentar sobre aquela vez em que ela trancou a porta e disse que tínhamos 40 minutos apenas.
Pensei que ia rolar mais vezes. Sou um ingênuo, como ela e a mãe repetem. Não sou. Sou um besta mesmo.
Terapia alguma iria reconstruir ligamentos partidos, nem pagar a prótese no joelho. Se não fosse aquela merda de carro na contramão, eu não teria acabado com minha Shadow. Eu nem tinha bebido tanto, a Márcia me deu o fora e eu estava indo direitinho pra casa. Sóbrio, mas puto da vida. O Daniel me deu um toque, para eu terminar o namoro, ela não prestava. Não imaginei que era o filho duma puta quem estava comendo ela.
Chegou uma hora que cansei de falar do acidente, do joelho, da moto novinha, da Márcia, da mãe. Minha terapia é rodar de skate uma noite por semana e deixar a criatividade me guiar. Lógico que a mãe não desconfia. Ela acha que eu continuo a ir três vezes nas sessões. Para que alarmá-la? Ela parece mais tranquila e a Maria da Penha não reclama de receber o mesmo pagamento por menos sessões. Todos satisfeitos.
Voltei a rolar o skate no asfalto. Dei impulso com a perna menos fodida. Passava devagar pelas ruas escurecidas pelo crepúsculo. Hora mais besta. As luzes nos postes ainda não estavam acesas e a claridade do dia se ia com o sol poente.
O vento batia em meu rosto e gelava meu nariz. Meu cabelo estava solto, voando atrás de mim em um rastro negro.
Virei na rua Barcelona e dei de cara com uma placa. Desvio à esquerda. Brequei em frente a ela e chequei os arredores. Ninguém. Domingo morto. Tirei a lata de spray da mochila e fiz um gesto grandioso com os braços, regendo minha orquestra invisível. Gestos grandiosos e trilha sonora são essenciais para o exercício saudável da criatividade. Joguei a cabeça para frente e a voltei para trás. Meus cabelos ricochetearam no ar. Nem a pau eu os cortaria. Iria trabalhar a vida toda em um bar de rock e encher os braços de tatuagens. Viva a sociedade alternativa.
Pressionei a válvula da lata e a tinta formou palavras luminosas. Agora, sim. Desvio à esquerda, seu babaca. Fiz questão do uso da vírgula. Sou um cara culto.
Basta ser atropelado uma vez para ver esses gênios do volante como realmente são, uns putas de uns assassinos. Meus inimigos a quatro rodas. Essa devia ser minha quarta ou quinta placa artística. Guardei a latinha, peguei o skate e dei um passo para trás para admirar meu trabalho. Puta orgulho.
Foi quando escutei a risada.
Não dei muita bola, apesar de sentir calafrios subirem pelas costas. Quer saber? Nem aí. Virei, curvei-me em um gesto de agradecimento e ri também.
Escutei de novo a risada.
Apurei os ouvidos para definir de onde vinham. Da praça, ali adiante. Era arborizada e por isso difícil de se ver algo nela no lusco-fusco. Mas estava ali. No banco. Ares de adolescente. Os pés sobre o assento, sentada em cima do encosto. Vestia algo justo e escuro, e acho que botas. Não tinha como eu não ir lá.
Atravessei a rua e fui direto até ela. Era mesmo uma garota, mais velha do que imaginei. Culpa da merda do crepúsculo e das sombras que desciam das árvores.
— Então, você é um artista?
— Van Gogh, a seu dispor.
— Van Gogh era um louco.
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vivo. morto. x
Short StoryGuilherme ainda se recupera do acidente com o skate. Seu joelho dói. Mas isso não o impede de rodar pelas ruas, grafitar uma placa de sinalização e parar naquela praça. Ali, ele encontra uma garota. Logo ele vai descobrir que ela estava à espera del...