Cartas e Contos do meu amigo

O Cervo

A chuva torrava a forma da cidade e inundava minha imaginação. Eu, uma criança, não fugia da distração chuvosa, mas aquele dia trouxe algo mais além de gotas vertentes. 

Minha mãe decidiu visitar a irmã e eu ia junto, com o corpo esticado nos bancos do carro. A estrada estava mais molhada do que concreto, mas, ainda assim, tranquila. Mamãe me encarava pelo retrovisor, ás vezes, e eu consentia como criança incuriosa. Até que perguntei:

-Mãe, cervos existem? E com chifres?

-Sim, mas não por aqui. Se assustam.

-Ah, mas por que?

-Não sei, filho. Vai ver têm medo de sair da floresta. É a casa deles.

Fingi que entendi, mas fiquei mais curioso. Sempre via cervos na televisão e achava que eram de mentira por causa dos chifres. Lembravam um par de varinhas mágicas em crescimento e isso tomou conta da minha infância. Não queria um cachorro ou um gato, mas um cervo. Afinal, quero o inalcançável é sempre mais emocionante. 

As árvores margeavam a estrada e, em meio àquele turbilhão, vi o animal. Pelo menos achei ter visto, ou queria ter visto. Fiquei um bom tempo franzindo a testa para ter certeza e tive, simplesmente porque quis. Mamãe nunca acreditou, insistia em dizer que não apareciam. Dizia que eu era criança, que ainda não entendia, Nunca entendia. 

No meio daquela estrada, daquela floresta toda molhada, minha criança avistava um cervo, um lindo cervalhado.

Confesso que vi o que queria ver. Fui outras vezes visitar minha tia e aquele cominho nunca foi o mesmo, era só árvores e asfalto. Mamãe também não encarava mais pelo retrovisor, eu tinha crescido e não acreditava mais em varinhas mágicas. Nunca mais choveu.

Hoje não hesito em pensar que o que eu queria não era um cervo, não. Eu queri ter continuado com a criança que eu era, e percebi isso tarde demais. Pois no dia seguinte chovia e aquela chuva era toda lágrima que eu não tinha.