4 - A chuva sempre faz algo florescer

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Subi as escadas até o meu apartamento, com a minha mente trabalhando a mil por hora, tentando organizar as idéias e decidir o que fazer. A melhor alternativa é começar a procurar outro emprego mesmo, não posso me dar ao luxo de ficar uns dias em casa, mesmo recebendo os meus direitos. Até por quê, analisando algumas contas que fiz de cabeça não vão dar praticamente nada.

Me sentei em uma em uma cadeira que deixava próximo a uma janelinha, na qual tinha visão de quase toda rua, observei quando começou a chover. Gostava de olhar a chuva, sentada ali, sozinha com meus pensamentos. Coloquei meus fones de ouvido e dei play no meu Bon Jovi, e fiquei ali, por um bom tempo, observando a chuva apertar. Me dei conta de um movimento estranho em um terreno que ficava de frente ao condomínio. Era um terreno que estava a venda já a muito tempo, deve ser mesmo difícil vender qualquer coisa por aqui, a localização é péssima! Com mato e barro por toda parte o terreno era bem descuidado e há muito tempo os donos não vinham aqui, por isso estranhei o movimento, a chuva me atrapalhou a ver o que era, olhei com mais atenção. Percebi que era alguém tentando se abrigar da chuva com alguns pedaços de móveis velhos. Não parecia um adulto... Parecia uma crian...

- Vitória?! - sussurrei franzindo as sombrancelhas, me perguntando o que ela estava fazendo ali no meio daquela chuva.

Reconheci quando olhei paras as roupas dela, passei tanto tempo pensando nela que, apesar de ter uma péssima memória, não conseguiria esquecer nem que eu quisesse.

- O que eu faço... O que eu faço? - andei de um lado para outro me perguntando se seria uma boa idéia ir até lá. Eu estava fugindo de mais problemas, e agora que minhas suspeitas sobre aquela garota eram certezas, eu sabia que ela seria um grande problema pra mim. - Gisele! Você não é tão cruel assim! - disse a mim mesma, depois de refletir no quanto seria desumano ignorar aquela cena. Abri a porta do meu apartamento, disparei pelo corredor em direção às escadas, desci correndo as escadas e cheguei na portaria mais ofegante que um maratonista. Do portão do condomínio, pude ver que ela tentava fazer uma espécie de casinha com pedaços de um guarda roupa velho, mas não tinha sucesso algum pois as partes do guarda roupa sempre acabavam caindo em cima dela. Levei as minhas mãos a boca, e parei por um minuto, revivendo aquela cena dentro de mim, eu sabia bem o que era tentar se abrigar e não conseguir. A cena me deixou tão extasiada que ignorei o fato de estar levando um banho de chuva.

- Senhorita? Está tudo bem? - o porteiro perguntou enquanto me encarava preocupado.

- Sim... Está... Poderia abrir o portão pra mim?

- Vai sair numa chuva dessas? Quer pelo menos um guarda chuva emprestado? Eu tenho alguns aqui...

- Não é necessário, só vou buscar um coisa alí do outro lado da rua... Vou ser rápida.

- Está bem, a senhorita quem sabe.

Ele abriu o portão, e com certeza deveria estar pensando que eu era louca, com razão, aquilo tudo era mesmo uma loucura. Saí pelo portão e caminhei até o outro lado da rua, sem tirar os olhos dela. Ela estava com a mesma roupa, toda molhada e suja de barro, emburrada e chutando as madeiras velhas do guarda roupa.

- Vitória! - chamei em voz alta pela primeira vez, ela me olhou, fechou ainda mais a cara e me virou as costas, confesso que me senti horrível naquele momento, não deveria ter falado daquela maneira com ela da última vez que nos vimos. - Vitória! - dessa vez gritei, na esperança de que ela me desse atenção.

- Sai daqui! - Ela gritou de volta e não parecia nada feliz comigo.

Me aproximei dela, pisando naquele barro escorregadio e enxugando a água do rosto, segurei ela pelo braço e virei seu rosto frente ao meu olhando firme em seus olhos...

- Escuta aqui, você já sabe que essa casinha de madeira velha não vai dar certo! E você com certeza está com frio e com fome...

- Você não sabe de nada! - ela me interrompeu gritando.

- Me deixa falar! - gritei mais alto ainda - Eu tenho um apartamento pequeno, seco e quentinho, e alguns miojos de carne no meu armário. E eu estou oferecendo isso pra você agora! Então se eu fosse você, engolia esse orgulho idiota e perdoaria essa imbecil que gritou com você hoje cedo!

Ela abaixou o olhar emburrada e tive a impressão de ver uma lágrima rolando, mas não tive certeza por conta da chuva forte.

- Está bem... perdôo você. - disse sem me olhar nos olhos.

- Ótimo, garota esperta! Agora vamos! - corremos de mãos dadas até a portaria, pelo menos dessa vez, o porteiro abriu rápido aquela trava! Subimos as escadas molhando tudo por onde passávamos. Entrei no apartamento, mas ela ficou parada na porta, parecia estar com vergonha.

- Vem, pode entrar! Vou pegar umas toalhas pra gente se secar. Depois seria bom tomar um banho, se não vamos ficar doentes e isso não seria legal. - caminhei até meu guarda roupa e peguei algumas toalhas.

- Você não precisa fazer isso. - ela disse olhando pela janela.

- Fazer o que?

- Ser legal comigo. Você não quer isso.

- Vitória - envolvi a toalha em seus ombros e os segurei firme, fazendo com que ela olhasse pra mim - eu sei que fui grossa sem motivo algum, e isso foi muito errado. Mas agora eu quero ser legal com você, e concertar tudo, sério. Agora vou preparar nosso miojo enquanto você toma um banho. Você vai dormir aqui hoje.

Ela não disse nada, só me olhou por alguns segundos e me deu um abraço. Demorei a corresponder, mas não resisti, me abaixei, envolvi os braços nela e encostei sua cabeça no meu ombro. Eu tinha medo do que estava acontecendo, e do que ainda podia acontecer, mas Vitória não tinha culpa dos fantasmas do passado que me assombravam, eu não podia fazer com ela, o que um dia fizeram comigo, eu precisava fazer diferente! Ainda que isso custasse mais dor pra mim.

Depois de tomarmos banho, acomodei ela em minha cama, e me ajeitei em um colchonete velho no chão. De onde eu estava podia vê-la dormindo... Eu conhecia as minhas marcas, minhas dores, e os caminhos por onde andei. Mas e Vitória? O que teria acontecido pra que uma menina linda como ela, estivesse passando por isso? Eu tinha certeza que em breve eu iria descobrir.

- Boa noite Vitória! - cochichei.

- Boa noite moça Gisele... - ela cochichou de volta, sonolenta, e sorriu ainda de olhos fechados. - Obrigada por tudo...

Eu ainda não sabia, mas era eu quem deveria agradecer.

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