Em algum lugar desta carcaça podre e miserável, o homem que um dia costumei ser dormia pacificamente.
Os ruídos inquietantes ecoavam por todo o cômodo e eram como marteladas dadas diretamente em minha cabeça. A chuva que havia começado á tarde se propagou pela madrugada. Os pingos se chocando diretamente contra as telhas, eu podia os ouvir todos de uma só vez mexendo com o resto de minha sanidade. A alma que um dia residiu em mim estava dissipada há muito tempo.
Não posso me salvar. Não tenho salvação.
O sofá aonde eu estou deitado parece me engolir a cada segundo que se passa, sufocando-me. Deixei que a garrafa de uísque Jack Daniel's caísse e todo o líquido remanescente fora sugado pelo carpete da sala. A janela que estava aberta permitia a passagem dos pequenos respingos de água que misturavam-se com as lágrimas amarguradas que insistiam em continuar descendo por minha face. Na situação deplorável em que me encontro é fácil se questionar do porquê ainda continuo vivendo e roubando oxigênio de outros que poderiam fazer algo significativo pelo mundo. Me sinto tão vazio. Nem mesmo a embriaguez que o álcool me causou surtiu algum efeito que pôde aquebrantar a melancolia existente em meu ser. Senti minha garganta arder e a cabeça latejar, mais lágrimas salgadas rolaram juntamente com meu desespero que se fez crescente. Eu podia jurar que a qualquer momento iria explodir por acúmulo de sentimentos. Batimentos acelerados, olhos doloridos e corpo desidratado. Todo o líquido de meu corpo expelido em forma de angústia.
Senti o celular vibrar, notificando-me uma mensagem. Era dela.
Meus olhos arderam por conta da luminosidade do aparelho. A sala estava em completo breu e eu preferia que continuasse assim. Pensei em apenas selecionar automaticamente a mensagem para que fosse marcada como lida. Não sei se tenho coragem de olhar. O frio em minha barriga acusava a ansiedade, mas logo decepcionei-me. Não havia nada de importância. Apenas mais uma das mensagens desejando um 'Feliz Ano Novo.'
Não há nada de feliz nisso.
Ah, Deus é terrível, de qualquer maneira. Os filhos que ele diz amar tanto, passam uma breve estadia nesta terra somente para acúmulo de dor e sofrimento. Aonde está toda sua graça e bondade ? Eu cresci num ambiente de berço cristão e de tudo que já ouvi sobre Deus ser capaz, jamais presenciei algo na minha vida que me fez ter consciência da sua real onipotência. Desisti de ser produto do bem. Desisti de ser um produto do mal. Nem ao menos sei quem sou mais.
Um homem humilhado pode fazer grandes estragos quando está magoado. Um homem magoado consegue soltar sua fúria contra o mundo. Um homem de coração partido, o que este é capaz de fazer ?
Eu estou divorciado há três anos. Não tenho amigos. Não sigo mais a carreira policial. Nem mesmo os cachorros tenho mais. Nem ele eu tenho mais. Depois de tudo o que passei e consegui sobreviver, não achei que a solidão me afetaria tanto. O meu maior defeito é sempre ouvir o que meus demônios dizem.
Do meu inferno interior.
Comecei a me odiar quando vi que nem capacidade de manter meu casamente eu tinha. O assédio da imprensa, a pressão do FBI atrás dele, todos ao meu redor me consumindo e me sondando. Alguns me açoitando, outros me endeusando por tentar acabar com Hannibal Lecter, jogando-o de um penhasco. Meses após o ocorrido na falésia, Molly me deixou.
'Eu não te reconheço mais, Will.'
A recordação de suas palavras só ajudou a aumentar a dor de minha cabeça.
'Eu não aguento. Não consigo mais. E eu não posso. Eu não me casei com você para me sentir ameaçada e tempo todo. E nem sei do que ter medo.'
Será que as coisas estão melhores desta forma ? Ela aparenta estar mais feliz pelo o que tenho acompanhado em suas redes sociais. Provavelmente até tenha um novo amor.
Saio de minha posição original do sofá e sento-me no estofado. Estendo minha mão até a mesa de centro procurando a outra garrafa de uísque e destampo, levando até minha boca bebendo diretamente do gargalo. Com a outra mão alcanço um frasco de soníferos. Era possível que nem mesmo aquilo adiantasse. A vida humana é difícil de se exterminar. Obviamente eu possuía uma segunda opção para poder recorrer. Levantei-me para acender a luminária no canto da sala. Eu apreciava o quão escuro estava, mas era necessário ao menos um fio de luz para o que eu estava prestes a fazer, ou então não enxergaria nada. Abri o frasco de medicamentos e despejei uma quantidade generosa em minha mão, levando logo à minha boca.
Ingeri uísque para auxiliar a descida das pílulas, o que fez meu estômago doer e embrulhar pela mistura nem um pouco compatível. Reparei que ao colocar as pílulas sob minha mão, derrubei algumas no chão. Eu estava trêmulo e com a visão embaçada pela embriaguez. Estendi mais uma vez meus braços até a mesa, tateando, até encontrar uma caixa pequena. Mordi meu lábio inferior, hesitando. Aquela altura eu já havia voltado a chorar. Estendi o braço esquerdo que estava balançando muito pelo nervosismo.
'Às vezes, deixo uma xícara de chá cair para se quebrar ao chão. De propósito. Não fico satisfeito quando ela não se junta novamente. Algum dia, talvez ela volte a se unir.'
Talvez ela nunca se una.
Retirei a lâmina prateada da caixa e posicionei perto do meu braço e num só movimento comecei a rasgar a pele horizontalmente fazendo um corte irregular. Gemi de dor. Acabei soltando a pequena lâmina por conta da laceração, mesmo tremendo e ofegante consegui recuperá-la. Ajoelhei-me ao chão. Senti os efeitos da quantidade de soníferos e etanol circularem por meu corpo. Repeti o mesmo no braço direito, porém, um corte menor. Não aguentei por conta da dor latejante. Desabei no carpete.
Os braços completamente carmesim pareciam adquirir brilho por conta da iluminação. Ainda chovia. Eu estava jogado no chão da sala altamente drogado e sangrando até a morte. A visão estava escurecendo. Olhei em direção ao corredor e pude jurar que vi uma silhueta nas sombras. Não ousei acreditar na minha mente perturbada e fechei os olhos. Após mais alguns segundos agonizando finalmente senti minha consciência abandonar o meu corpo, deixando-me aéreo.
Apenas livre-me desta dor.
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The Broken Teacup
FanfictionWill Graham sempre foi um castelo de cartas inacabado esperando ser demolido a qualquer momento. Ele só não esperava que o psiquiatra canibal viria a criar gosto por derrubar as cartas, aguardando que fossem reconstruídas para serem levadas ao chão...