Bruna - Não acredito que meu dia possa piorar

65 9 0
                                    

Não acredito que meu dia possa piorar mais. Depois de outro dia de uma rotina sem sentido e nenhuma notícia de Kadu, estou de carona com Dona Débora. Ela mal fala comigo, mesmo eu estando presa-hospedada na casa dela. Está abatida. Assim como eu, precisa de remédios para dormir.

Para completar, meu telefone toca bem no meio do engarrafamento. Olho no visor, minha mãe. Tenho vontade de jogar o telefone pela janela. De soltar os cachorros em cima dela. De acusá-la. De gritar. De exigir que ela me devolva Kadu são e salvo. Mas tudo isso seria em vão.

Aquela mulher não amava ninguém. Nunca amou. Foi capaz de se reaproximar, numa hora tão frágil como a morte de vovó, sua própria mãe, para orquestrar o sequestro do namorado da filha. Não. Percebi há muito tempo atrás que ela não entende conversas ou gentilezas. Minha mãe só entende o peso da lei. E agora se metera em uma enrascada grande.

Respirei fundo. Eu precisava atuar. Dona Aparecida não poderia desconfiar de nada. Ela precisava pensar que estávamos ainda longe da pista real do paradeiro de Kadu. Que nem tínhamos suspeitos ainda.

─ Alô, mãe. – Fiz voz chorosa. Imediatamente a atenção de Dona Débora voltou-se para mim.

─ Bruninha, meu amor, você está bem? – Ela era boa, quem ouvisse seu tom de voz diria que sua preocupação era genuína. Eu seria ainda melhor.

─ Estou. – Funguei. – Na medida do possível. É claro.

─ Fizeram alguma coisa com você? Eu estou morrendo de preocupação. Fui na sua casa, mas você não estava.

─ Não fizeram nada demais comigo. Eles me colocaram no porta-malas, deram umas voltas pela cidade e se livraram de mim me jogando de uma ribanceira na cidade vizinha. – Expliquei tudinho como se ela não soubesse. Como se não fosse ela quem tivesse dado as instruções a esse respeito. Consigo quase ouvir ela dizendo para não fazerem nada com a garota, com a sua única filha. – Estou machucada, mas é de leve. Alguns arranhões e manchas roxas pelo corpo. Nada com que se preocupar. Pelo menos, não fisicamente. Agora o trauma psicológico, penso que esse ficará para sempre.

─ Coitada da minha filhinha. Quer que eu vá lhe fazer companhia?

─ Não precisa. Estou passando esses dias na casa dos pais de Kadu. – Expliquei vagarosamente. Dona Débora ouvia com atenção cada palavra. O trânsito estava parado. – Quero estar por perto quando receberem o telefonema pedindo o resgate. Quero garantir que não tentem nada. Que paguem logo o que estão pedindo e salvem a vida do meu namorado. – Resolvi encaixar essa história como a cereja no bolo.

─ É melhor que paguem mesmo, Bruninha. Com esse tipo de coisa não se brinca.

─ Eu sei. Eu sei. – Usava com ela um tom de confidente. – Mas, voltando ao assunto, eu não gostaria que a senhora fosse lá, porque não gostaria de ser ainda mais inconveniente do que estou sendo me hospedando, levar visita já é demais. Você sabe que minha sogra não gosta muito de mim, não quero dar motivos. – Dona Débora torceu o nariz no banco do motorista, mas não disse nada.

─ Eu entendo. Entendo demais. Então, não devo esperar que você venha almoçar no sábado...

─ Não. Não vou. Não até essa situação se resolver.

─ E a polícia tem alguma pista do menino?

─ Que eu saiba, ainda não. – Retomei o tom choroso para dar credibilidade, como se a simples menção a Carlos Eduardo me desesperasse. – Estão esperando o contato para tomar providências. E nós estamos desesperados. Tenho vontade de pedir que a família de Kadu contrate investigadores particulares...

─ Não faça isso, Bruninha. É melhor não meter mais gente nessa historia. Vai que os sequestradores descobrem esses investigadores e matam o menino.

─ Você acha que eles fariam isso?

─ Quem sequestra, é daqui para ali. Matam bem rapidinho.

─ Não fala assim, mãe. – Tornei a fungar.

─ Vai dar certo, minha querida. Eu vou rezar por ele, viu?

─ Reze mesmo. Obrigada. – Aquele diálogo exigia do meu cerebrozinho desregulado um sacrifício sobre-humano.

─ Por nada. – O assunto foi morrendo. Pensei que ela ia desligar, mas ainda havia uma questão a ser feita. – Só mais uma coisa, Bruninha. Você vai ter condições de dançar domingo?

─ Vou. – Encontrei forças para dizer, embora tenha pensado mil vezes em desistir. Mas tudo deveria transcorrer normalmente. – Estou arrasada, mas o show tem que continuar, não é mesmo? O cachê é muito bom para ignorar e o vencedor ganha em dobro. – Sabia que esses argumentos encantariam minha mãe. Eu era a filha obediente. Eu aprendera exatamente como jogar esse jogo. Ela não sabia que eu já superara o mestre havia muito tempo.

─ Está certa, Bruninha. Ainda com esta tragédia acontecendo, você continua tendo que pagar suas contas... – Aquela conversa estava me dando nojo. Eu conhecia o discurso de cor. Já o ouvira tantas vezes antes. Mas eu precisava aguentar mais essa, por Kadu.

Depois de desfiar uma longa lista de conselhos, finalmente se despediu. Ainda que não a estivesse vendo, dava para notar que ficara mais do que satisfeita com minhas decisões. Missão cumprida.

─ A gente se fala então.

─ A gente se fala.

Desligou o telefone e eu desabei no choro. As lágrimas simplesmente caindo. Como eu poderia ser filha desse monstro?

Para minha surpresa, Dona Débora abre o porta-luvas e me dá uma barra de chocolate suíço. Comi. Precisava fazer alguma coisa. O açúcar foi me acalmando.

─ Se você quiser, eu aceito ser sua agente. – Falou do meio do nada. – Primeiro, porque você com certeza ama meu filho. Nem eu posso mais negar isso. – Como se ela precisasse se justificar, foi desfiando seus motivos para aceitar a proposta feita por Kadu. Eu fiquei vermelha com suas palavras, se até mesmo Dona Débora estava admitindo uma coisa dessas, é porque deveria estar estampado no meu rosto. – Além do mais, qualquer pessoa que consiga atuar no nível que você atuou, debaixo de toneladas de estresse, merece uma chance de crescer. Ou isso, ou você é uma mentirosa compulsiva, porque eu quase acreditei nessa ceninha mãe e filha.

***

Por Onde AndeiOnde histórias criam vida. Descubra agora