Capítulo 1 - Isabel

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"Quem é o homem que dorme comigo todas as noites? Quem é este homem que diz que me ama todos os dias?"

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Uma das coisas que eu não aprendi foi perder. Quando eu tinha nove anos mais ou menos meu pai me ensinou a jogar dama. Eu sempre ganhava dele, pois facilitava minhas jogadas, queria me ver feliz. Então um dia minha prima Amanda foi passar um final de semana em nossa casa. Morávamos em um casarão na fazenda. Acho que fora construída no século passado. Era uma daquelas casas com muitas janelas e uma escada de uns seis degraus na entrada. O piso era todo de tábua e eu gostava de ouvir minha mãe andando de salto sobre ele, pois fazia um barulho bem legal.

Eu e Amanda fomos jogar dama. Sentamos debaixo de um jatobá que ficava nos fundos do casarão. Tinha uma mesa de pedra que meu pai havia colocado lá. Era tão pesada que precisava de muitos homens fortes para movê-la. Eu gostava de ficar ali ouvindo os pássaros cantarem. E em certa época do ano as cigarras faziam uma verdadeira sinfonia em nosso quintal. Eu adorava tudo aquilo.

Amanda morava na capital e era cheia de dengos e frescuras. Tinha medo dos animais mais mansos da face da terra. Nós duas temos a mesma idade. Ela não podia por os pés descalços na terra. Um dia ela tentou caminhar sem as sandálias e quase morri de rir do jeito que ela andava. Parecia que estava pisando em cacos de vidro. Fazia uma careta tão feia que se ela mesmo a visse no espelho se assustaria. Mas eu gostava dela, e não vou negar que muitas vezes ela foi como um brinquedo para mim. Eu a colocava em situações embaraçosas só para ver a reação dela.

Teve um dia que eu fui com ela até a pocilga, mas a gente não falava pocilga, falávamos chiqueiro mesmo. Eu pedi para ela jogar comida para os porcos, e quando ela levou a vasilha cheia de milho para colocar no cocho, a porca meteu o focinho na mão dela e derrubou tudo, inclusive a vasilha que caiu lá dentro do chiqueiro. Eu disse que a minha mãe ia brigar, que aquela bacia era presente de casamento. Amanda ficou doida, quis chorar, mas eu a encostei na beirada do chiqueiro e mandei que engolisse o choro.

― Você vai ter que entrar lá e pegar a vasilha. Minha mãe vai dar uma surra em nós duas se esses porcos amassarem essa bacia.

Ela ficou apavorada. E eu tive que segurar o riso. Aquela vasilha era mesmo de tratar dos porcos, mas se eu não fizesse um drama ela não entraria lá. Então eu disse que ela podia entrar sem medo, pois os porcos estavam comendo e não iriam fazer mal algum a ela. Abri devagar o portãozinho e praticamente a joguei lá dentro. Ela se descontrolou e caiu sentada sobre um monte de merda, mas se levantou tão rápida e saiu com a bacia na mão. Estava fedendo a merda de porco. Eu comecei a rir e ela chorou.

― Vamos tomar um banho no rio pra lavar sua bunda cagada! – eu disse segurando a mão dela e tapando o nariz com a outra mão.

O rio passava do lado direito da nossa casa. Era pequeno, não corríamos risco de nos afogarmos. Era bem raso. Só em época das cheias que ele ficava perigoso e meus pais me proibia de ir até lá. Mas aquela tonta tinha um medo danado. Tudo para ela na fazenda era assustador. Com muito custo ela entrou na água. Estava gelada e ela ficou até roxa. Era muito branca. E eu a invejava por aquela brancura. Os cabelos dela eram tão vermelhos e ao sol eles brilhavam tanto. Eu achava lindo. Olhava para os meus e sonhava um dia ter aqueles cabelos. Talvez seja por isso que hoje eles são assim ruivos.

Quando terminamos a primeira partida de dama, Amanda deve ter se assustado muito comigo. Talvez nunca tinha me visto daquele jeito. A infeliz ganhou de mim, e eu não podia admitir aquilo de jeito nenhum. Aquela menina que tinha medo de tudo, que nem sabia cavalgar, não sabia andar descalça e não diferenciava um cavalo de uma égua. Como poderia ter ganhado aquela partida de mim?

Eu a segurei pelo pescoço e a joguei no chão. Caí sobre ela batendo meu joelho sobre seu estômago. Ela gemeu de dor e arregalou os olhos. Acho que ela pensou que eu iria matá-la. Mas eu não faria isso com minha prima querida, só queria mostrá-la que não poderia nunca ganhar de mim. Eu era superior a ela. Muito superior. Em tudo. Meu pai era muito mais rico do que o dela. Minha mãe era muito mais bonita que a dela. Minha casa era muito maior que a dela. E tantas outras coisas. Ela sempre foi mais bonita que eu, quando saíamos juntas era pra ela que os garotos olhavam, aquilo me dava uma ira.

Ela começou a ficar vermelha e sem ar, então soltei a garganta dela e disse:

― Nunca mais roube de mim! Está me entendendo?

― Eu não roubei – disse ela engasgada.

― Roubou sim. Admita que roubou – apertei de novo a goela dela. Então ela balançou a cabeça concordando e eu a soltei. Quando ergui os olhos vi minha mãe nos olhando da janela. Ela balançou a cabeça reprovando minha atitude e se afastou.

― Está bem. Você ganhou. Eu roubei – disse Amanda se levantando e sacudindo a terra de seu vestido.

Nunca mais eu perdi pra ela. E não sei por que, toda vez que jogávamos ela tremia e ficava com a voz entrecortada. Amanda sempre foi uma menina muito medrosa, eu não. Nada me dava medo. Meu pai sempre fazia tudo por mim. Meus desejos eram sempre realizados, sempre tive tudo o que eu quis. Não tive irmãos, mas eu sempre disse que não queria, pois eu gostava de ser sozinha, de ter a atenção dos meus pais só para mim.

Na verdade minha mãe teve outro filho quando eu tinha uns quatro anos. Era um menino, mas morreu com 15 dias de vida. Não me lembro bem o que aconteceu, mas meus pais falaram que ele caiu da cama e morreu. Eu tenho uma vaga imagem do meu pai me pegando no colo e me beijando com o rosto molhado de lágrimas, enquanto minha mãe chorava aos pés da cama segurando o bebê. Ele me tirou de perto dela e me colocou no quarto de brinquedos.

Ah! Como eu sinto falta dele! Estou tão absorta aqui diante do túmulo dele que quase não percebo as mãos de Marcelo envolvendo minha cintura. Eu viro meu rosto pra ele e dou um sorriso forçado.

― Já não acha que é hora de ir embora? Já faz mais de hora que está aqui.

Eu olho para a foto do meu pai na lápide. Tão sorridente, tão jovem. Tão bonito. Hoje está fazendo exatamente um ano que ele morreu e eu ainda não consegui me acostumar sem ele. Tenho medo de esquecer a sua voz, o som das suas risadas. Dizem que com o tempo a gente esquece o cheiro, alguns dizem que esquecemos até a fisionomia. Eu não me permitirei esquecer nada disso. Passo a mão na foto, mas eu queria era tocar a pele dele, queria sentir o abraço dele. Olho para as flores que coloquei sobre o túmulo e depois me viro para meu marido e digo:

― É tão difícil.

Marcelo se posiciona diante de mim e me abraça. Fica acariciando minhas costas e eu me sinto tão protegida, tão amada, tão compreendida e choro. Choro muito em seu ombro. De saudade e de gratidão. Neste último ano ele tem se mostrado tão companheiro, tão amigo. Diante das minhas crises de tristeza, ele está sempre perto me estendendo a mão, confortando-me. Na maioria das vezes não diz nada, mas está ali ao meu lado e isso é tudo que eu preciso.

― Vai passar – ele diz quase em um sussurro. – Tudo vai ficar bem, meu amor.

― Eu não estava preparada para perdê-lo.

Eu me solto dos seus braços, abro minha bolsa à procura de uma toalha de rosto, mas não encontro, então enxugo minhas lágrimas com as costas das mãos. Marcelo permanece na mesma posição, observando-me. Parece que tem medo que eu faça alguma loucura.

― Vamos! – digo segurando sua mão direita.

Ele beija minha testa e diz que me ama. Eu me sinto segura e digo que também o amo.


Mar de rosas e de espinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora