Os mortos vieram através da chuva, fantasmas do pântano, dos afogados, de homens cujos corpos foram entregues ao lodo. Eu vi Kent, o Rubro, correr às cegas, até se debater na areia movediça. Alguns poucos irmãos tiveram o bom-senso de correr pela estrada enquanto fugiam. A maioria terminou no pântano.
Padre Gomst orava de sua jaula, estarrecido, gritando as palavras como se elas pudessem lhe servir de escudo: “Pai nosso que estais no céu, protegei vosso filho. Pai nosso que estais no céu”. Cada vez mais rápido, o medo tomava conta do padre.
O primeiro deles flutuou sobre a poça de lodo e sobrevoou a estrada. Brilhava como a luz da lua, algo que jamais aqueceria um ser humano. Você poderia ver seu corpo luminoso ser atravessado pelas gotas de chuva, que depois explodiam no chão.
Ninguém permaneceu comigo. O nubano correu, olhos abertos em seu rosto escuro. Burlow, o Gordo, aparentava não ter mais uma única gota de sangue. Rike gritava feito uma criança. Até Makin sentia pavor.
Abri meus braços à chuva. Pude sentir seus golpes. Eu não vivera muito ainda, mas até a chuva me despertava lembranças. Como as noites perigosas em que permaneci no parapeito da Torre Keep, à beira de um precipício, quase me afogando sob um dilúvio, e desafiando os raios que caíam perto de mim.
“Pai nosso que estais no céu. Pai nosso...” Gomst atropelou as palavras quando o espírito se aproximou. Ele queimava com um fogo frio que você podia sentir como se lambesse seus ossos.
Mantive meus braços abertos e meu rosto contra a chuva.
“Meu pai não está nos céus, Gomsty”, eu lhe disse. “Ele está em seu castelo, contando seus homens.”
O fantasma me cercou e eu o olhei bem nos olhos. Eles eram vazados.
“O que há com você?”, perguntei.
E ele me mostrou.
E eu mostrei a ele.
Há uma razão pela qual eu vou ganhar esta guerra. Todos os vivos têm lutado uma batalha que envelheceu antes mesmo de eles nascerem. Eu já afiava meus dentes nos soldadinhos de madeira do salão da guerra do castelo de meu pai. Tenho uma razão para ganhar onde os demais falharam. Eu simplesmente entendo o jogo.
“Inferno”, disse o morto. “Eu trago o inferno.”
E ele jorrou o inferno para dentro de mim, frio como a morte, afiado como uma lâmina.
Senti minha boca desenhar um sorriso. Ouvi minha risada ecoar na chuva.
É assustador ter uma faca, gelada e cortante, em seu pescoço. O fogo também é assustador. Assim como a tortura. E um velho fantasma da Estrada dos Cadáveres. Tudo isso é capaz de paralisar um homem. Até que você perceba o que eles são. Eles não passam de maneiras para se perder o jogo. Você perde o jogo - e o que foi que perdeu? Você perdeu o jogo.
Esse é o segredo e ainda fico impressionado de ser meu, apenas meu. Pude ver como o jogo realmente era na noite em que os homens do Conde Renar interceptaram nossa carruagem. Também era uma noite de tempestade, eu me lembro do barulho da chuva no teto da carruagem e do trovão distante.
O Grande Jan havia arrancado a porta de sua gaiola para nos tirar de lá. Ele só teve tempo para mim. Jan me atirou longe, num canteiro de roseira-brava tão espesso que os homens do negann imaginaram que eu havia fugido noite adentro. E eles não queriam procurar. Só que eu não corri. Ali fiquei, preso pelos espinhos, e vi quando eles mataram o Grande Jan. Vi nos momentos congelados que os relâmpagos me proporcionaram.
Vi o que fizeram com minha mãe e quanto tempo eles levaram. Eles jogaram a cabeça da minha mãe contra uma pedra. Cachos dourados e sangue. naquele tempo, era doloroso demais ver minha Maizinha quebrado daquele jeito, como um brinquedo. Como se fosse algo sem valor.
Quando mataram, a minha mãe eu enlouqueci. Eles, então, cortaram sua garganta. Eu era estúpido então, com apenas nove anos, e lutei para salvá-la Mas os espinhos me agarraram de jeito. Desde então, aprendi a apreciá-los.
Os espinhos me ensinaram o jogo. Fizeram-me entender o que todos esses homens sérios e carrancudos que lutaram na Guerra Centenária ainda precisam aprender. Você só pode vencer o jogo quando entende que se trata de um jogo. Deixe um homem jogar xadrez e diga a ele que todos os peões são seus amigos. Diga que ambos os bispos são santos. Faça-o lembrar de dias felizes à sombra das torres. Deixe-o amar sua rainha. Veja-o perder tudo.
“O que você tem para me dar, criatura?”, perguntei.
É um jogo. Vou mover minhas peças.
Senti o espírito frio em mim. Vi sua morte. Vi seu desespero. A sua fome. E devolvi tudo. Esperava mais, só que ele era apenas um morto.
Mostrei a ele o tempo vazio aonde minhas memórias não ousam ir. Eu o deixei olhar bem.
Ele então correu de minhas memórias - fugiu, e eu o persegui. Mas somente até as margens do pântano. Porque se trata de um jogo. E eu vou vencer.