Papéis, canetas e cafés.
Os compromissos do dia seguinte eram as únicas coisas que lhe passavam pela mente. O cansaço, as olheiras visíveis e a mão rabiscada eram sinais claros de que passava tempo demasiado em seu escritório, preenchendo papeladas e entregando trabalhos. No fundo, sabia que o dinheiro não lhe levaria a nenhum lugar especial nem lhe compraria a eterna felicidade. Mas o compromisso com suas contas e o sonho da casa própria a seguravam naquele emprego medíocre e estressante, que lhe cobrava muito e pagava pouco. Pela janela, via os carros passando, pedestres correndo, todo aquele barulho e todo o silêncio do centro da cidade. O sol se punha e apenas enxergava a luz laranja do céu pelas brechas criadas pelos imensos prédios e altos postes.
A luz do semáforo brilhava vermelha e centenas de carros paravam em um congestionamento sem fim. Pensava porque morava tão longe de modo que a incapacitava de andar até seu pequeno apartamento, e então se lembrava mais uma vez da escassez de dinheiro e das contas para pagar. No transporte coletivo, pessoas brigavam em busca de um lugar enquanto outras deitavam suas cabeças sob o vidro após um dia cheio.
E lá ela permanecia, quieta, estável. Sua mente, no entanto, torturava-a como um furacão que passa por uma cidade litorânea. Para ela, nada havia de mais triste do que ouvir sua voz interior lhe dizendo infinitas maldades, lhe dizendo que não era suficiente ou que havia ganhado peso, que não conseguia se sustentar e que não era amada. Mas não conseguia evitar. Alimentou tais pensamentos ao longo dos anos que virou rotina, incontrolável. Assim, apesar de parecer estável e observadora por fora, lutava contra um demônio interior por dentro.
A seu ver, sua vida já havia sido desencaminhada desde o dia em que nasceu. 8 de outubro, libriana, nasceu em uma cidade litorânea durante a manhã. Sem pai e com uma mãe que sofria de depressão há alguns anos, foi levada para viver com seu irmão, 20 anos mais velho, que dividia a casa com sua namorada, atual esposa e mãe de seus filhos. Cresceu, cursou a escola e a faculdade, se formou em direito. Mas a cicatriz que a falta de sua mãe lhe fez nunca foi curada, e uma raiva pela condição da mesma ficara em seu coração durante todo este tempo. Não sabia o motivo, não sabia quem era o pai e não sabia porque a mãe lhe deixou morando com o irmão durante 10 anos de sua vida. Também não sabia porque os irmãos e a mãe se negavam em falar sobre tal assunto. Após se formar, com extremo rancor de sua mãe, conseguiu seu emprego em São Paulo e se mudou definitivamente para longe de toda a família. Apesar da determinação e da certeza de tal mudança, o rosto daqueles que compartilham de seu sangue lhe passavam pela cabeça inevitavelmente todos os dias.
Mas seguia mesmo assim.
Lá fora, o trânsito permanecia caótico. Perdida em seus próprios pensamentos, mal percebeu quando o ônibus freou bruscamente e capotou, deixando todos dentro do veículo inconscientes.
YOU ARE READING
Em Branco
RandomO trânsito permanecia caótico. Perdida em seus próprios pensamentos, mal percebeu quando o ônibus freou bruscamente e capotou, deixando todos dentro do veículo inconscientes. Ali, enquanto as ambulâncias chegavam, carros paravam e a polícia apurava...