Ela estava sozinha no último andar da sua casa, sentada no sofá de camurça que sua mãe sempre falava para não sujar de comida. A cada página que virava do livro o qual estava completamente mergulhada, um barulho de gota pingando, de água fazendo bolha, seguindo seu curso, a intrigava. Como pode em uma sala com sofás e criados-mudos habitar som tão lastimoso? De início a curiosidade não foi suficiente para que ela checasse se tinha algum vazamento no teto, ou se estava chovendo, e por isso continuou a ler seu livro. As horas rastejavam contra o tempo, e ela nem se movia. Percebeu que o sofá aonde estava começou a se mover lentamente, ora pra lá, ora pra cá, e quando sentiu a água sobejando em seus dedos que repousavam tranquilamente em uma almofada, reparou que estava flutuando. Desespero é pouco para o que acabara de sentir dentro de seu coração. Uma semente de pânico foi plantada dentro de si, e instantaneamente, cresceu em seu corpo. Amígdalas, fígado, coração. Transformaram-se em um mosaico de pavor. Depois de alguns minutos paralisada encarando o próprio reflexo, ela se obrigou a saltar do sofá e correr na água que ainda não a cobria totalmente. A lógica natural propunha que se a água já a alcançara no andar mais superior, todos os anteriores à esse já estavam perfeitamente preenchidos. A necessidade de salvar sua família era maior do que a de salvar a si mesma: começou a descer as escadas, e o nível da água ia gradualmente engolindo o seu corpo. Quando chegou o momento de nadar, ela respirou fundo, armazenando o máximo de oxigênio que seus pulmões pudessem suportar sem que explodissem, e mergulhou na sala de jantar. Vazia. Tentou nadar. Cozinha. Vazia. Parou de tentar. Sua boca e seu nariz cederam, seus braços e suas pernas foram derrotados, e antes que verificasse todos os cômodos, a água rapidamente a invadiu. Amígdalas, fígado, coração. Ela foi subindo, subindo, subindo, até que foi interrompida pelo teto da cozinha. E foi exatamente ali que ela morreu.
O carro de seus pais foi estacionado na rua de sua casa, quatro batidas de porta de carro, quatro pessoas saindo dele. Adentraram na residência, e avançando à cozinha para preparar lanches, a mãe dela deparou-se com seu corpo estagnado no chão. Cabelos secos e emaranhados, roupa seca e amassada, pernas secas e arranhadas, pescoço seco e molhado. De sangue. Começou a gritar e tocar a filha no rosto. Seu pai e seus irmãos chegaram de encontro com a mãe, e atônitos, experimentaram a amargura que contextualizava o momento: a menina que se afogou por inteiro, que viu o mar aonde havia o rio, o barulho aonde havia o silêncio, os espinhos aonde haviam as rosas, a morte aonde havia a vida.
Ninguém sabe como aconteceu. Só ela.