1 - Caixa D'água

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Nos conhecíamos desde... Sempre, eu acho. Talvez até um pouco mais. O fato é que eu e Yasmin temos a mesma idade, crescemos no mesmo bloco, nossas portas são uma de frente pra outra, brincávamos todos os dias quando crianças e, lentamente descobrimos a adolescência.

— O que vamos fazer hoje? — perguntou Yasmin a cabeça repousada sob os braços cruzados, deitada a meu lado em cima da tampa da caixa d'água. Era um de nossos refúgios.

— Não sei. Podemos espiar a Avenida Quatro pra ver se encontramos alguma Nightmare. — Ela se inclinou sobre mim e tapou minha boca com sua mão macia. Dei uma mordida no dedo que a fez tirar, rindo. — Que foi?

— Você sabe, Ron. Nós não dizemos o nome delas. Dá azar.

— Você ainda acredita nessa bobagem? Isso é coisa que nossos pais diziam para nos assustar. Eu não tenho medo! Vou ser um grande guerreiro quando for adulto! — levantei-me e, colocando as mãos em concha ao lado da boca, gritei a plenos pulmões — NIGHTMARES, EU NÃO TENHO MEDO DE DIZER! — virei-me para ela puxando-a. — grita comigo, Yaya. NIGHTMARES! — Insisti mais duas vezes até que ela me acompanhou com a voz trêmula a principio, depois a plenos pulmões.

— NIGHTMARES! — gritamos juntos. Depois, simplesmente gritamos coisas indistinguíveis até ficarmos sem fôlego e termos que sentar novamente, rindo.

— Estou preocupada, Ron – ela disse por fim, a cabeça deitada sobre minhas pernas cruzadas.

— Com que?

— Você sabe. Estamos com treze anos. E se formos escolhidos no Dia C?

— Não vou deixar ninguém te levar. — Com algum esforço me inclinei para frente e beijei-a no nariz.

Mas de fato, o Dia C era uma preocupação para nós, para nossas famílias, e para todas as famílias do distrito Vosk. Era o dia em que a gangue dona desta parte do distrito passavam nas casas recolhendo os jovens em troca de alguns punhados de comida, dinheiro ou drogas. Para nossa sorte, nossos pais não eram viciados e, até onde sabíamos, apesar das dificuldades, não precisávamos nem de dinheiro extra nem de comida. Não éramos ricos como os moradores do distrito alto, mas não éramos miseráveis como muitos dos coitados que viviam próximos às docas, que trocavam e faziam filhos para trocar por um punhado de drogas. Não. Nós tínhamos uma vida relativamente tranquila.

— Obrigada, Ron. — Tão logo a beijei, ela segurou minha cabeça e inclinando a cabeça em direção da minha, me beijou suavemente nos lábios. Sorrimos. — Vamos descer? — acenei afirmativamente com a cabeça.

Com cuidado passamos pela escada colocada entre a janela do apartamento vazio e a caixa d'água. Antigamente morava ali um professor, mas depois que seu filho foi levado, alguns anos atrás, ele deixou a cidade; hoje era nosso esconderijo, ninguém sabia que conseguimos abrir a porta, e nos escondíamos aqui para conversar, fumar, falar mal dos pais e dos adultos, ou só para gritarmos. Com o tempo, conseguimos a escada de ferro que colocamos sobre a caixa d'água, um cilindro de cerca de quinze metros de altura com uma tampa ligeiramente convexa, mas o suficiente para conseguirmos ficar equilibrados. Descemos e fomos olhar os carros passando, tentando imaginar o que seus condutores e passageiros pensavam dentro deles, tentando não pensar no Dia C.

Cuidado, moleque!Where stories live. Discover now