Liberte-se! Sempre ouço esta frase nos corredores vazios das salas, e paro para refletir sobre o fato de algumas pessoas não perceberem que a liberdade apresenta nuances estranhas. Ser livre é ser você! Ser você, muitas vezes, é perigoso. Lembro-me, caro leitor, das leituras fruídas que tive ao ler os contos de Edgar Allan Poe, em que sentir sensações novas e, ao mesmo tempo, perturbadoras sobre minha própria condição psicológica. Quem realmente sou eu? O que sinto de verdade sobre tudo e todos? Incógnitas! Malditas incógnitas!
O espelho é a arma mais perigosa do ser humano, reflexo do ilusório da nossa raça. O que vemos não é o que somos. Superficialmente, mostramo-nos para o outro; pensamos no outro. Será? Não acredito em rótulos, talvez aconteça de verdade com alguns, no entanto, comigo foi tudo diferente.
Esqueci de mencionar no início que estou internado no hospício municipal da minha cidade, Rio Tinto, que hoje, igual à função do espelho, mostra apenas a parte leviana de mim. Sou considerado um insano, mas não se assuste, pois antes também era assim. Louco sempre foi meu codinome.
Quando criança, passava horas caçando as indefesas borboletas. O indefeso, de certa forma, atraia-me. Colocava-as em uma garrafa pet transparente, e orgulhava-me por tê-las capturadas. Em seguida, retirava individualmente e, antes de arrancar brutalmente as suas asas, eu encarava-as e confortava cada uma delas antes da sua inevitável morte. Ah, eu até hoje odeio borboletas!
Já adulto, com a imponência da juventude pulsando em minhas veias, passava a maior parte do meu dia trabalhando. Burocrata foi nisso que me tornei. Odiava preencher documentos, carimbar documentos... Detesto documentos! Vestia-me de terno cinza, e gravata escura nas segundas-feiras, como uma forma de mostrar para as pessoas o meu horror pelo início da semana.
No mais, eu era respeitado e até admirado pela maioria das pessoas que trabalhavam comigo. Elogiavam minha elegância, atitudes, e, acima de tudo, meu poder! Eu amava ser invejado. No entanto, nunca perguntaram como era minha vida longe do trabalho. Aqueles egoístas! Não que eu necessitasse de mais atenção, pelo contrário, prezo por meus minutinhos de silêncio naquele ambiente, mas, às vezes, só às vezes, gostaria que alguém me conhecesse de verdade.
E aqui estou eu, caro leitor, sozinho em uma sala escura. Cena recorrente em minha vida. A solidão ocasiona um distanciamento do supérfluo que é a nossa existência. Apenas quem vivencia do estado só sabe da grandeza que é se deixar perder, em seu subconsciente, para se redescobrir como indivíduo. "- O eu se perde em busca de se encontrar". E foi assim que vi, pela primeira vez, a minha imagem. Assustadoramente o eu que vive dentro desta casca.
Já dizia minha falecida mãe: - Meu filho, sempre narre uma história do início! Parece óbvio, mas geralmente, nas mais famosas histórias, o princípio de tudo é deixado em oculto. O encete tende-se a ser a parte mais obscura dos loucos. E eu sou um louco,
ou deixei que simplesmente me chamassem assim. Não pela certeza de que apenas os loucos demonstram sua verdadeira face, mas sim por gosto e prazer, aceitei.
Minha fama de louco soava, e até hoje soa, entre as bocas mais imundas da minha pequena cidade. Tudo começou em uma segunda-feira a noite, no badalar dos pequenos sinos da Igreja Matriz. Como de costume, fui esquentar um pouco de água para fazer um chá de ervas, que eu mesmo colhia do quintal, o lugar que atraia minhas desprezíveis borboletas. De repente, a água do chá, que já borbulhava, abriu espaço para a cena mais linda que já presenciei: as cores vibrantes do fogo.
Encarei as chamas que em uma ardência bruta me evocava. Chama azul, com pequenos traços vermelhos. Gritava-me, chamava-me, atraia-me. Cheguei mais perto do fogão, girei todas as bocas disponíveis e deixei o fogo criar-se sozinho. De repente, a pequena chama que antes brilhava sozinha, agora estava espalhada pela cozinha. Mesa, cortinas, tapetes, panos, garrafas, cadeiras e quaisquer outros objetos que estavam em sua frente queimavam-se. E eu, naquele lindo lugar, maravilhava-me com o pulsar das chamas. De repente, viro-me e avisto aquele maldito espelho. Refletindo um homem aparentemente feliz e em chamas. Poucas vezes vivenciamos momentos de impactos em nossas vidas, mas, sem dúvidas, aquele espelho mostrou minha verdadeira face.
Caro leitor, essa minha afirmação a seguir irá gerar dúvidas sobre a veracidade da narração, mas lembre-se que você está lendo algo escrito por um louco, então não se questione. Vamos aos fatos: ao avistar-me refletido no espelho, enxerguei algo diferente pousado nas bordas daquele objeto, cheguei mais perto e tive a satisfação dobrada naquele momento, que agora estaria perfeito. Uma borboleta negra, com olhos enormes pairava sobre o espelho. Lembrei imediatamente da minha infância e cheguei a conclusão que, naquela fase, mostrava-me sem máscaras: - eu era um caçador de borboletas cruel! Corri imediatamente para caçá-la, mas, ao mover-me sentir uma dor terrível sobre minhas pernas: eu estava pegando fogo! Retirei as roupas em chamas que estavam em mim, e despi-me. O espelho agora refletia o meu natural. Refletia o meu eu! A nudez humana transmite veracidade sobre o indivíduo, que, em meio aos acessórios, envaide-se. "-Sou um homem nu, caçador de borboletas e adorador do fogo!"
Lembro-me de cada detalhe daquele dia, o barulho do fogo soa até hoje em meus ouvidos. O cheiro de fumaça me traz reminiscências cordiais, mostrando-me realmente quem sou, e, hoje, sempre que converso com algum curioso que me visita, inicialmente faço a seguinte indagação:
- Quem é você quando ninguém está olhando?
Robson Nascimento da Silva, Dezembro de 2017.
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Quem é você quando ninguém está olhando?
Short StoryAs máscaras estão por toda parte! O que vemos não é o que somos... Resta-nos perguntar: "Quem é você quando ninguém está olhando?"