Acordou com os primeiros raios de sol.
A luz entrava pelas frestas da única janela, anunciando o novo dia.
Lá fora, o galo cantava. O morro se agitava.
O cheiro de café impregnado no barraco.
Sentou no colchão, ainda sonolenta, os pés tocaram o chão frio de concreto. As costas doíam, o pescoço praticamente imóvel. Cedeu a cama para os irmãos menores, quando as goteiras começaram a cair na noite passada.
Ainda ouvia os pingos na bacia de alumínio, "Ping! Ping! Ping!"...
Estava ansiosa, mal conseguiu dormir.
Olhou ao redor, para as marcas deixadas nas paredes. AR15, M4, AK, .40. Conhecia cada uma, brincava de dar nome a elas.
Observou os remendos mal feitos que ela e a mãe fizeram. Descobriu outros a fazer.
Encarou o pai sorrindo no retrato amarelado, em cima da televisão queimada.
Caminhou nas pontas dos pés. Não queria acordar os mais novos.
A mãe, a essa hora, já estava longe. Para ela não existia carnaval, feriado, sábado, domingo.
Equilibrou a lata d'água no ombro. Sentia falta do chuveiro, inutilizado depois que a caixa d'água foi alvejada.
Amarrou o turbante. Pintou a boca. Calçou a sandália prateada.
O plástico envolvia a fantasia que ela usaria no desfile da escola de samba, hoje à noite.
Sentiu com as pontas dos dedos a suavidade das plumas, a fragilidade das lantejoulas. Se admirou com o colorido das fitas, o brilho furta-cor dos cristais falsos. Soprou suavemente o cata-vento da alegoria, que girou e girou lentamente.
Olhou para o canivete, indecisa se deveria leva-lo ou não. Tocou a lâmina afiada, o punho descascado. Cogitou esconder o objeto no sutiã, como sempre fazia, mas achou por bem deixá-lo.
Afinal é carnaval!
Quando o mundo todo parava para lhe olhar.
Hoje finalmente ela seria alguém, não seria mais invisível, como acontecia em todos os outros dias do ano.
Nessa noite aconteceria uma mágica, morro e asfalto se tornariam um só.
Puxou o trinco, olhou para os irmãos dormindo como anjos, molambos, amontoados, e sorriu. Sentiu o coração apertar por deixá-los sozinhos, a mais velha de apenas dez anos.
Escancarou a porta, levantou a cabeça, pisou no chão de barro com o pé direito. A mãe diz que dá sorte.
E também fazer o sinal da cruz... Isso já era o pai que dizia, mas não faz mais. Não deu certo com ele. O padre disse que tudo na vida tem um porquê.
Não entendo as regras do céu.
As do morro, com certeza. Mulher, homem, velho, criança, aqui quem manda é a bala. Essa não precisa de porque, nome, sobrenome, é sempre muito bem intencionada. Às vezes, até quem não tem nada a ver, leva.
Acho que também não entendo como funcionam as regras da bala.
Primeiro o pai, depois o mano, quando soltava pipa na laje. Mas essa foi bala de polícia, durante uma ocupacão. Pelo menos é o que contam...
A mãe não quis ver o corpo. Lembro dele criança, magrelo, cria do morro, correndo pelos becos, brincando de biribinha na frente de casa, jogando bola com os moleques no campo de terra batida, se escondendo atrás da porta depois de roubar manga no quintal do vizinho. Foi há dois anos, mas a mãe ainda chora. Diz que bebe pra esquecer.
Desceu o morro se equilibrando no salto.
Se distraía contando os degraus, somando os números nas portas dos barracos, às vezes, se confundia, recomeçava, esquecia mais uma vez, desistia.
Será que esquecia porque largou da escola? Ou largou da escola porque nunca aprendia as lições, datas, fórmulas, a tabuada... Aquele verbo de nome tão bonito, como chama, mesmo? Mais-que-perfeito.
Acena para um vizinho que passa na direção contrária, responde ao bom dia do açougueiro que abre a loja, desvia de um vira-lata pele e osso que coça a orelha. Abaixa a cabeça quando avista três moleques menores que ela, fuzil nas costas, pistola na cintura, olhos vermelhos de pitar pedra.
Seca o suor da testa, ajeita a fantasia no ombro, aperta o tamborim contra o peito.
Confere a hora no pulso.
Aperta o passo.
Rosa no chão.
Olhos inertes, batom borrado nos lábios, um pé descalço. O mar vermelho avança morro abaixo, ziguezagueando entre os paralelepípedos, se misturado à lama, manchando as plumas, tingido de carmim os cachos negros da passista.
Lá embaixo, a cadência continua.
No asfalto, na avenida, nos clubes, camarotes, arrastando a multidão, atada, indiferente, hipnotizada pelo maior espetáculo da Terra. Sambando com a bateria, pulando atrás do trio-elétrico, seguindo o 'Galo', cantando os versos das marchinhas.
Gritam, "Pega ladrão!", um moleque corre.
E no alto do morro, a brisa sopra tranquila no cata-vento que gira e gira, lentamente.
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Cata-vento
RomanceConto que retrata a vida de uma passista de escola de samba, sob o seu ponto de vista romântico.