Capitulo Sete

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Daria, boquiaberta, ficou olhando a ama enquanto esta era sacudida por soluços. Já vir Isabella chorar, mas nunca sem motivo aparente, nunca sem espalhafato e nunca sem uma platéia conveniente que se movesse diante de suas lágrimas.
Ajoelhada ao pé da cama, a escrava continuou a observá-la cada vez mais intrigada. Já servia Isabella há cinco anos e conhecia-a até melhor do que teria desejado. Porém, era primeira vez que a via tão desconsolada. Levantando-se, pegou um lenço bordado de um dos cassoni, os cofres pintados onde fora guardada parte do dote de Isabella. Depois foi ajoelhar-se diante da ama.
Ela viu Isabella soluçar convulsivamente. Quieta, esperou Ouviu-a respirar fundo e de imediato se retesou, temendo que a ama descontasse a frustração nela com palavras rudes ou com uma bofetada. Num gesto automático, tocou a cicatriz que marcava seu rosto, resultado de um dos rompantes cólera de Isabella. Na ocasião, a ama a estapeara e, com um dos anéis, fizera-lhe um corte profundo em sua face esquerda. Daria buscou dentro de si todo o ódio que nutria por aquela mulher. O ódio que lhe dava forças para sobreviver em sua miserável existência. Porém, já não conseguia ter rancor à ama E, por mais que tentasse, tudo o que conseguia sentir era pena.
Seria porque naquele dia, pela primeira vez, Isabella a chamara por seu verdadeiro nome? Durante os cinco anos em que estivera a seu serviço, a ama insistira em apelidá-la de Bárbara, interpelando-a invariavelmente num tom provocativo. Naquele dia, porém, olhara-a nos olhos e a chamara de Daria, tratando-a como um ser humano e não como mero objeto.
A escrava fez um movimento quase imperceptível para atrair a atenção da ama. Adrienne parou de chorar e viu Daria ajoelhada, cabisbaixa, estendendo-lhe humildemente um lenço. Quando o pegou, percebeu que a outra não ousava sequer erguer o rosto. Por quê? Constrangimento talvez? Súbito, Adrienne ficou apreensiva. Será que a escrava desconfiava de sua farsa?
Por que não me olha, Daria?
A jovem russa teve um sobressalto. Encostou a cabeça nos joelhos e se retraiu, esperando uma punição.
Perdoe-me, madonna  murmurou.
Olhe para mim, Daria.
Adrienne pousou a mão em seu ombro. Ela encolheu-se ainda mais.
Peço-lhe perdão  repetiu.  Madonna Isabella me
ordenou que mantivesse meus olhos indignos sempre baixos,
sob pena de levar dez chibatadas.
Ninguém irá chicoteá-la, Daria. Agora eu lhe ordeno
que me olhe.
Vacilante, a escrava endireitou-se e levantou os olhos. Lia-se em seu rosto medo e confusão. Adrienne decidiu correr o risco. Precisava desesperadamente de uma amiga e pouco se importava de se aliar a uma escrava.
Julga-me mudada, não é?  perguntou sem rodeios.
Daria assentiu com um gesto rápido e tornou a baixar o rosto. Adrienne segurou-lhe o queixo e fez com que a encarasse novamente. Depois disse com suavidade:
Conte-me o que pensa. Eu lhe ordeno.
Madonna dispensou as outras camareiras... Permitiu que
eu, sozinha, a ajudasse a se preparar para o banquete. E...
enfeitou-se apenas com dois anéis  a escrava gaguejou.
Se Adrienne não estivesse lhe segurando o queixo, ela teria baixado o rosto.
Há algo mais, não é?  Adrienne inquiriu, perscrutando-a de modo implacável.
Madonna Isabella não me puniu quando eu lhe escovei
os cabelos. E, pela primeira vez, não me chamou de Bárbara.
Daria ficou com a respiração em suspenso, pronta para receber a bofetada que dessa vez, tinha certeza, não tardaria atingi-la.
Sabe por que eu a chamava assim... antes?
Porque, de acordo com madonna, eu vim de um país
de bárbaros.
Adrienne teve vontade de desaparecer dali, tamanha era vergonha que sentia. Queria pedir perdão a Daria, mas sabiá que isso não seria possível.
Nunca mais a chamarei por esse nome  prometeu,
sabendo que mais não poderia dizer.
Ela viu uma pergunta escrita nos olhos de Daria. Uma pergunta que não se atrevia a responder.
A escrava fitou-a, desconcertada. Enumerara para si as diversas transformações que haviam se operado na ama. Mas não notara a maior transformação de todas, os olhos de Isabella, que antes exibiam um brilho frio e pérfido, capaz de fazer gelar o sangue, agora pareciam revelar calor e gentileza.
Em que momento exatamente Isabella mudara? E por quê? Teria o casamento alterado seu comportamento de maneira tão drástica? Ou aquelas mudanças estariam ligadas à sua desaparição, logo após a noite de núpcias, que todos comentavam pelos corredores do palácio? Daria refletiu por um momento. Talvez a transformação da ama fosse resultado de pura bruxaria. Ou, ainda, de uma intervenção do mundo dos espíritos. A escrava estremeceu. Disfarçadamente, fez o sinal-da-cruz.
Adrienne deixou as mãos caírem no regaço. Desviou o olhar e disse:
Primeiro, desfaça meu penteado, Daria.
Alessandro parou à porta do quarto, mudo de admiração. Envergando uma camisola branca, Isabella parecia pura e virginal, como uma das madonne de Mantegna. Enquanto observava a escrava penteá-la, sentiu novamente o desejo de tocar a esposa, de enroscar os dedos numa mecha daquela cabeleira brilhante como ouro.
Isabella o enfeitiçara, concluiu. Depois de havê-la possuído, já não conseguia esquecê-la. Era como se estivesse sob efeito de uma droga poderosa e quisesse mais, mais, mais... Se desejasse apenas o corpo dela, poderia saciar seus apetites carnais e se dar por satisfeito. Porém, sua ânsia não se limitava somente ao plano físico. Disso Alessandro já desconfiava desde o momento em que sacara a adaga e vertera seu sangue para poupar o dela.
Sabia que seria muito mais sensato ficar longe da esposa naquela noite. Assim, poderia provar que não lhe era submisso. Que a doçura de seu olhar não o comovia até o fundo do coração. Que não se importava com o fato de que Piero a beijara como um amante, não como um irmão. Todavia, não conseguia escapar do encantamento que Isabella lançara sobre ele, atraindo-o com um magnetismo invencível.
Desprezando-se por sua fraqueza e dominado pelos pensamentos sombrios que o haviam perseguido naquela noite, Alessandro fixou os olhos em Isabella. Quando a escrava terminou de retirar as pérolas dos cabelos dela e desfez-lhe a trança, ele aproximou-se das duas.
Adrienne, de olhos fechados, inclinou a cabeça para trás quando Daria começou a penteá-la. Esperava relaxar e superar a tensão quase insuportável que enfrentara. Porém, em vez de se descontrair, sentiu os músculos retesarem-se ainda mais.
Madonna.
A alegria e o alívio que ela experimentou ao ouvir a voz dele eram tamanhos que chegavam a lhe doer. Virou-se para Alessandro, e seus cabelos escaparam das mãos de Daria.
Sandro!  exclamou.
Mas seu sorriso de boas-vindas morreu-lhe nos lábios, mão que ela estendia tornou a cair em seu regaço. Alessandro fitava-a com uma fúria quase tangível.
O sorriso de Isabella parecia tão genuíno, tão sem artifício que ele ficou momentaneamente desarmado. Teve que cerrar os punhos nas dobras do robe para resistir ao impulso de tomá-Ia nos braços. Observou o brilho nos olhos dela se apagar forçou-se a encará-la.
Pode ir, Daria  Adrienne disse à escrava, sem tirar
os olhos do esposo. Depois cruzou as mãos sobre o colo
esperou.
Durante um longo momento, eles se fitaram em silencio como dois animais selvagens se medindo antes de um confronto.
Bem, não tem nada a dizer?  Alessandro finalmente
indagou, irritado porque, mais uma vez, ela havia reagido de
forma imprevista e não fizera nenhuma tentativa de adulá-lo
para serenar sua raiva.
Não enquanto eu não souber do que estou sendo acusada
Alessandro apertou os maxilares, enervado com ela. Isabella mostrava-se ainda mais audaciosa do que previu, ou mais inocente...
Mas Alessandro não afastou esse último pensamento da mente e falou depressa:
Correm boatos de que as relações que mantém com seu
irmãos contrariam todo o senso de decência cristã, madonna,
E o que presenciei esta noite pareceu confirmar esses boatos.
Então Alessandro testemunhara as detestáveis investidas de Piero, Adrienne pensou. Queria gritar, queria dizer-lhe que os boatos não se aplicavam a ela, mas sim à outra Isabella. Mordeu o lábio, sabendo que não havia nada a dizer. Alessandro nunca acreditaria na inocência dela. E, se soubesse o teor da conversa que tivera com Piero, haveria de matá-lo para vingar sua honra e garantir sua segurança. Adrienne não tinha coragem de condenar o irmão de Isabella à morte, não obstante a voz de sua consciência lhe soprar que ele ainda representava uma ameaça para Alessandro.
Meu irmão às vezes se excede  ela argumentou com
simplicidade.
Então eu lhe sugiro que o convença a se refrear daqui
por diante.  Alessandro deu um passo à frente. Prosseguiu
num tom contido, na tentativa de reprimir o ciúme atroz que
o corroia: _ Será que me fiz compreender? Ou acaso terei que
ser mais explícito?
Adrienne ergueu o queixo.
A única coisa que compreendo é que não fiz nada de
errado. Está me recriminando pela conduta de meu irmão. Mas
acato sua advertência e informarei Piero de sua vontade.
De novo, a despeito de tudo, Alessandro sentiu admiração por ela. Quanto a Adrienne, estava com os nervos à flor da pele. Ao relembrar o modo como ele havia olhado para Luísa, teve que se conter para não perder a compostura.
E, já que estamos aparando algumas arestas, tenho algo
a lhe dizer também. Não admitirei que flerte com outras mulheres e corra o risco de pôr filhos bastardos no mundo.
Alessandro retesou-se. Em seus vinte e quatro anos de vida, ouvira muitas vezes aquela palavra. Bastardo. Acabara se acostumando com ela. Agora, porém, ao ouvi-la da boca de Isabella, sentia-se como se tivesse recebido um golpe físico.
O que espera, madonna, de um homem que é, ele próprio,
um bastardo também?  replicou.
Adrienne notou a dor e o ressentimento que pontilhavam as palavras dele. Tarde demais, arrependeu-se do que dissera. Quis tocá-lo, mas pressentiu que Alessandro não aceitaria seu consolo. Crispou as mãos, sentindo-se irremediavelmente impotente.
A esposa de seu pai não pôde gerar os filhos dele. Eu
só lhe peço que, antes de procurar outras mulheres, me dê a
mesma oportunidade que seu pai deu à esposa.  Enquanto falava, lembrou-se de outros fatos da vida de sua ancestral! Isabella havia abortado duas vezes, e Adrienne sabia muito bem em que circunstâncias. E, porque estava determinada a mudar o rumo daquela trágica história, ela arrematou sem se intimidar:  Não serei uma esposa complacente, Sandro.
Ele a fitou. As mãos de Isabella continuavam cruzadas sobre o regaço, porém, sua postura dócil era enganosa. Nos olhos dela brilhava uma centelha de fogo, e à sua volta o ar parecia carregado de estranhas energias. Por um momento, Alessandro ficou em suspenso, entre a indignação e o estarrecimento. Depois, sorriu involuntariamente.
Isso é uma ameaça, Madonna?
Por quem me toma, dom Alessandro? Por uma bárbara?!
Adrienne perguntou, repetindo o que ele lhe dissera em
certa ocasião. Arqueou as sobrancelhas e sorriu também. -
Estou apenas lhe dando um conselho amistoso.
Ele já não resistia à necessidade de tocá-la. Mas, para não sucumbir totalmente aos seus encantos, evitou tomá-la nos braços. Em vez disso, correu os dedos por seus cabelos e começou a penteá-los com as próprias mãos. Nunca imaginara que um gesto tão simples pudesse ser tão excitante. Sem refletir, levou as mãos, ainda transbordantes de fios dourados, até as faces de Isabella. Acariciou-lhe o rosto, o pescoço, a nuca. Ela atirou a cabeça para trás e deixou escapar um suspiro satisfeito. Alessandro olhou o reflexo de ambos no espelho. Suas mãos, morenas e fortes, contrastavam com a alvura e a delicadeza do colo que tocavam. Num impulso, ele apertou-a contra si.
Ao contato com o corpo de Sandro e com a evidência de seu desejo, Adrienne descerrou as pálpebras. Seus olhares se encontraram no espelho, e ela observou fascinada as mãos másculas enrodilhando-se nos laçarotes da camisola, desatando-os, escorregando para seus ombros e, por fim, espalmando-se sobre seus seios.
Adrienne estremeceu, já antecipando o mundo de prazeres que provaria aquela noite. Alessandro curvou-se e, tomando-a nos braços como se ela fosse uma criança, levou-a para o leito. A seguir, despiu o robe e sentou-se na borda da cama. Queria tanto tocá-la, que acabou permanecendo imóvel.
Seus olhos, no entanto, não puderam se furtar de tocá-la. Adrienne sentiu seu olhar como uma carícia física, como se as mãos morenas estivessem lhe roçando o corpo inteiro: Não pôde negar que Alessandro tinha o poder de incendiá-la com um mero olhar. Enrubesceu e sentiu o corpo vibrar, pulsar, sacudido por um leve tremor. O calor irradiou-se por suas coxas, seus mamilos escureceram.
Seria tudo diferente agora, quando tinha consciência de amá-lo? Seria mais intenso? Ou ela o amara desde a primeira vez? Precisava senti-lo, certificar-se mais uma vez de que era real. Com a ponta dos dedos, acompanhou o contorno de sua boca.
Enquanto se contivera para não tocá-la, Alessandro pudera acalentar a tênue esperança de resistir. Mas, agora que Isabella o tocava, não lhe restava alternativa senão se render a ela. Segurou-lhe a mão e beijou-a.
É minha, Isabella. Só minha.
Adrienne sorriu.
Então me mostre.
Alessandro estirou-se ao lado dela. Acariciou-lhe as coxas e procurou seu sexo. Adrienne entreabriu as pernas para acolher seu toque. Estava quente e úmida. Se ele não a conhecesse, não perceberia o gemido quase inaudível que escapou de seus lábios. Se estivesse apenas interessado em seu próprio prazer, ignoraria a súbita rigidez dela.
Por que não me disse que eu a estava machucando?
inquiriu bruscamente. Teve raiva de si mesmo por sua inconsequência. Na véspera, a amara durante um dia inteiro. Acaso
agora estaria pretendendo amá-la durante toda a noite?
Não posso proibi-lo de procurar outras mulheres e, no
momento seguinte, negar-lhe meu corpo.
Porque a simplicidade com que ela falava o comovia, Alessandro franziu o cenho.
Não me agrada possuir mulheres que estão sentindo dor.
E não me agradou ouvi-lo falar em "mulheres". Deixa
passar desta vez.  Adrienne sorriu para dissimular seu ciúme.
Reconheço que não deve ser fácil para um homem abdica
de tantas amantes para se dedicar a uma só.
Dito isso, ela afagou-lhe a face. A despeito de seu sorriso, Alessandro viu o fogo que lhe animava os olhos castanhos. Lembrou-se da promessa que fizera a si mesmo de procurar uma amante tão desejável quanto Isabella. Pelo visto, ao contrário do que parecera a princípio, não lhe seria nada fácil cumprir essa promessa.
Acuado ante a força de seu desejo, tratou de se distanciar novamente. Tornou a sentar-se na borda da cama e inclinou-s para apanhar o robe caído no chão. Retesou-se assim que sentiu a mão de Isabella em sua cintura.
Não pode dormir comigo, Sandro?
Ele atirou-lhe um olhar zombeteiro por sobre o ombro.
Acaso planeja me prender com correntes ao pé da cama,
como se eu fosse seu animalzinho de estimação, para certificar-se de que não a trairei?
Não. Confio na sua fidelidade. Mas gostaria de senti-lo perto de mim esta noite.
Alessandro lutou para não ficar comovido com a luminosidade que havia nos olhos dela. Em vão.
Não lhe prometi nada, Isabella. Sabe disso.
Sim, eu sei. E eu não exigi que me fizesse nenhuma
promessa.
Adrienne sorriu tristemente. Quisera poder abrir-lhe o coração! Mas não podia, não podia... Com infinita ternura, alisou as costas largas de Alessandro. Mal sabia quanto seu desprendimento o havia impressionado. Em vez de fazer exigências, ela acenara com um convite amoroso. Era simplesmente irresistível.
Desarmado pelas palavras e pelo toque de Adrienne, ele largou o robe e voltou a se deitar com ela. Controlando-se para não beijá-la, puxou-a para si e aninhou-a nos braços.
Adrienne quis olhá-lo ainda uma vez antes de adormecer. Virou-se ligeiramente para fitá-lo, e seu sexo pressionou o dele.
Não está tornando as coisas nada fáceis para mim  Alessandro queixou-se, segurando-lhe o quadril e imobilizando-a.
Sinto muito...  Num ímpeto, Adrienne tomou fôlego e tentou lhe dizer tudo o que sentia:  Sandro, eu...
Porém, calou-se. Ele nunca lhe daria crédito.
O que é, Isabella?
Nada... nada. Boa noite.
Alessandro estreitou-a e deixou que uma de suas mãos repousasse na cintura dela. Nunca admitiria, mas não havia outra mulher no mundo com quem desejasse estar naquele momento.

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