A tensão de Adrienne foi aumentando à medida em que avançavam pela rua mal-iluminada. A cada passo retesava-se.involuntariamente, o coração disparado, a garganta seca, a respiração em suspenso.
Não, não podia ir adiante com aquela trama absurda! A plena realização do horror que estava prestes a suceder atingiu-a como um raio. Não, não podia levar aquilo adiante... Quem lhe garantia que o matador seguiria suas instruções à risca? Como fora ingênua! Mas o que lhe dera para confiar na palavra de um homem que fazia do assassinato sua profissão? Pois nada, nada lhe garantia que ele não mudaria de idéia. Ou que, no último instante, sua mão não vacilaria e acabaria cometendo um erro irremediável. Ademais, e se Piero lhe tivesse oferecido mais dinheiro, para que desferisse um golpe mortal?
Adrienne estava nas fronteiras do imponderável. As dúvidas se cruzavam e entrecruzavam em seu cérebro. Seus piores temores e pesadelos acordaram em seu íntimo. Tinha que alertar Sandro, contar-lhe tudo... Mas então, talvez não acreditasse nela. Ou, na melhor das hipóteses, nunca mais confiaria nela.
O pânico tomou conta de Adrienne, materializando-se na forma de um suor gelado que lhe banhava a fronte, de violentas contrações em seu estômago que iam subindo até fechar sua garganta. Vagamente, notou que a liteira havia acabado de dobrar uma esquina mais à frente. Concentrando-se nas palavras que deveria dizer a Alessandro, ela nem ouviu o rangido abafado de uma porta que se entreabriu atrás dos dois.
Alessandro porem, escutou o ruído. Virou-se abruptamente, protegendo Adrienne com o próprio corpo, e sacou a adaga. Aquele movimento brusco tirou-a de seu estupor e, aterrada, ela olhou para o assaltante. No lapso de segundo em que os dois adversários empunharam suas adagas, Adrienne percebeu que o malfeitor não era o homem com quem havia feito o trato.Sem refletir, ela soltou um grito inarticulado e lançou-se sobre o assassino que investia com a adaga. Não sentiu nada quando a lámina afundou em seu flanco; nada, a não ser cólera e um imperioso instinto de proteção.
Isabella! Alessandro gritou fora de si, empurrando o desconhecido e empregando tamanha força que a cabeça do outro chocou-se contra uma parede com um baque surdo.
Os grttos atraíram a atenção dos guardas e dos servos que carregavam a liteira. Empunhando lanças, eles vieram em seu socorro.
Entrementes, Alessandro foi acudir Adrienne. . Amparou-a bem a tempo de evitar que desabasse no chão.
Isabella, está... As palavras morreram em seus lábios quando percebeu a mancha escarlate que se alastrava sob a axila de dela. Não! gritou, tomado de desespero.
Tomou-a nos braços. Mal ouvia os sons da briga que se desenrolava às suas costas. Por um momento, olhou para a esposa transido de horror. Depois virou-se para seus homens e bradou:
Vivo! Quero esse homem vivo! .
Porém, era tarde demais: a ponta de uma lança já se enterrava no peito do malfeitor.
Quem o contratou? Fale, maldito! Quem o mandou aqui? Alessandro tomou a gritar, trêmulo de raiva.
O homem fez uma careta de sofrimento. De olhos vidrados fitou o vazio, enquanto a vida ia pouco a pouco se esvaindo de seu corpo. Quando sua cabeça tombou para a frente, Alessandro soube que não havia mais nada a fazer. Ele apertou o corpo inerte de Adrienne contra si e começou a correr.Ela despertou sentindo o corpo inteiro latejar com uma dor difusa. Instintivamente tentou se fechar para a realidade, todavia sem sucesso. Ouviu sons. As batidas remotas de um pilão. O crepitar do fogo. O monótono murmúrio de uma mulher rezando.
Por favor, dom Alessandro, eu lhe peço que se retire.
Não há mais nada que possa fazer. Nada.
Cumpra seu dever, dottore. Mas não arredarei pé daqui enquanto não tiver certeza de que ela ficará bem.
Talvez tenha que esperar durante horas. Ou dias o médico replicou, contrariado com a presença dele no cômodo reservado para o parto. Alessandro encarou-o melancolicamente, cheio de pesar e remorso. Estava exausto, entretanto, não conseguia relaxar.
Isso... Aqui ele se interrompeu, incapaz de mencionar explicitamente o ferimento no flanco de Adrienne. Isso está acontecendo porque ela recebeu um golpe que estava destinado a mim. Eu esperarei o tempo que for necessário.
Adrienne ouviu-os. Não conseguiu discernir o que diziam e quis chamar o marido. Fez menção de falar e mordeu o lábio quando sentiu uma dor atroz no abdômen. Parecia-lhe que uma navalha lhe retalhava as entranhas. Ela gemeu alto.
Alessandro segurou-lhe a mão. Afagou-lhe o rosto, tentando reconfortá-la.
Tudo vai acabar bem, tesoro.
Mais uma vez, Adrienne tentou falar. Mais uma vez, sentiu sua carne sendo dilacerada por lâminas invisíveis. Arqueou o corpo e contorceu-se de agonia. A dor gradualmente cedeu e ela suspirou. Sentia uma umidade pegajosa nas pernas e sob os quadris. Respirou fundo e o cheiro de sangue penetrou em suas narinas.
Súbito, sua mente se aclarou. Os últimos acontecimentos voltaram-lhe à memória com horrível precisão. Agora ela sabia exatamente o que lhe ocorria. O desespero oprimiu-lhe o p~ito. Aquilo ela não fora capaz de mudar: Sandro nunca veria seu IiIho vivo. O filho que o corpo dela expulsara. Adrienne percebia que apenas lhe fora dado alterar as circunstâncias do aborto. Sua criança, porém, assim como a de Isabella, nunca veria a luz do dia.
E o que seria de Sandro? Conseguiria ela salvá-lo? Ou apenas mudaria as circunstâncias de sua morte prematura? Adrienne teve um calafrio. Não podia acreditar que todo o seu empenho fosse resultar em nada.
Mas no fundo, bem no fundo, temia que só fosse capaz de alterar meros detalhes no destino de Alessandro. Um destino que talvez estivesse escrito de modo indelével.
Não fraqueje, Isabella. Lute... lute!
Adrienne entreabriu as pálpebras ao som da voz dele. Mas o adorado rosto de Sandro surgiu-lhe embaçado por uma névoa de dor. Não, ela pensou. Não lutaria. Melhor seria morrer agora que ser forçada a presenciar a perdição de Alessandro. Ademais, com sua morte desapareceria o catalisador da própria morte dele. Talvez esse fosse o motivo de sua vinda para aquele tempo, Adrienne refletiu. Talvez estivesse destinada a perecer para que Sandro pudesse sobreviver... Claro, aí estava a chave de tudo! A conclusão era tão lógica, que ela chegou a ensaiar um sorriso. Tomou a fechar os olhos e entregou-se a escuridão...
Isabella, eu a amo. Está me ouvindo?
O tom veemente dele arrancou-a do reino de sombras em que ia mergulhando.
Alessandro viu-a piscar. Por fim, ela descerrou as pálpebras. O coração dele encheu-se de esperança. Quando percebeu que o olhar de Adrienne se firmava em seu rosto, quase gritou de alegria. Em seguida, sentiu o peito oprimido, pois ela o encarava como alguém que está prestes a dizer adeus.
Eu te amo, Isabella repetiu, e continuou repetindo, como em um encantamento. Como em uma oração.
O remorso veio atormentá-lo novamente. Como podia ser que Isabella tivesse recebidoo golpe que fora destinado a ele? Agora, como se não bastasse, resgatara-a da inconsciência só para confrontá-la com uma realidade de dor. Com o coração, mais pesado do que nunca, Alessandro lamentou que sua esposa precisasse chegar às portas da morte para que ele ganhasse coragem de lhe confessar seu amor.
Algo a estava trazendo de volta, Adrienne pensou, enquanto a dor retrocedia e ela conseguia respirar outra vez. Sandro. Sandro a havia chamado e a trouxera de volta. Não... Adrienne
moveu a cabeça. Não podia ser Sandro, pois ela ouvira...
Eu te amo, Isabella.
Devagar, Adrienne abriu os olhos. Sandro?
Sim, meu amor.
Ela umedeceu os lábios ressequidos.
O que... o que disse?
Eu te amo, Isabella. Amo muito.
Adrienne fechou os olhos, enquanto as lágrimas rolavam silenciosamente por suas faces. Que ironia do destino! Agora que estava prestes a partir para sempre, ouvia as palavras por que tanto ansiara. A escuridão começou a se fechar novamente sobre ela.
Não me deixe, Isabella. Por favor...
Quase contra a vontade, Adrienne sentiu o apelo de Alessandro impelindo-a para um mundo de luz.
Depois outra voz soou:
Acabou. E donna Isabella parou de sangrar. Aparentemente, está fora de perigo, dom Alessandro.
Ele levantou os olhos para o médico.
Então ela viverá?
Oh, sim. É jovem e forte. Se não for acometida de febre, viverá com a graça de Deus. O médico permitiu-se um breve sorriso. E poderá ainda lhe dar outros filhos.
Alessandro descansou a cabeça no travesseiro de Adtienne, pela primeira vez em muitos e muitos anos, chorou.
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As Duas Vidas de Adrienne
RomanceAo ser levada para o leito nupcial, Adrienne não tinha como fugir: dentro de instantes teria de entregar sua pureza a um estranho! O duque Alessandro di Montefiore, precisava consumar aqueles casamento arranjado. Mas não confiava em sua esposa: Isab...