Prólogo

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— 0486! – o guarda chamou – Acompanhe-me até a Ala Médica.

A mulher ouviu seu número e olhou assustada. Não poderia demorar a responder ou, sabia, receberia as consequências que eles pregavam serem apenas medidas de aprendizado.

Demorou mesmo assim, obrigando o guarda a entrar no quarto e puxá-la a força. Ele, como todos os outros, vestia cinza dos pés a cabeça; calça e blusa de mangas longas cobriam grande parte do corpo, deixando apenas pescoço e cabeça despidos. O brasão no peito continha os dizeres: Por uma sociedade organizada.

Somadas, as duas características de suas vestimentas atribuíram-lhes o apelido corações-cinzentos.

— 0486, eu disse Ala Médica!

Ela tentou levantar, mas o corpo começou a tremer. O coração-cinzento aproximou-se e a puxou pelos braços, os dedos afundando na pouca carne presente em seu corpo e garantiram manchas roxas para o dia seguinte.

— Por favor. – implorou, a voz soando ainda mais frágil que seu corpo.

Do lado de fora, o corredor parecia mais uma tubulação de esgoto desativada. As paredes de metal escuras e um cheiro de suor que os que lá moravam já nem sentiam.

O homem avançou para fora do quarto sem ao menos dar tempo da moça se recompor. Arrastou-a pelo corredor sombrio ainda puxando-a pelo braço, com olhos quietos seguindo-os durante todo o percurso.

0486 tentou levantar-se mais uma vez e seguir os passos daquele que parecia mais um carcereiro; lágrimas começaram a escorrer em seu rosto e os lábios balbuciaram palavras incompreendidas.

O guarda parou apenas quando chegaram até outra porta. Outro coração-cinzento mantinha-se parado bloqueando a passagem.

— Ala Médica? – o que estava parado perguntou.

— Sim, fertilização. – completou.

A mulher ouviu a resposta desesperada. Já sabia que uma visita à Ala Médica provavelmente seria fertilização, mas esperava ter se livrado dela depois de quase morrer no último parto. Seu corpo estava frágil demais para o procedimento, imaginou que ao menos aquela seria a última vez e finalmente estaria livre do submundo.

Respirou tentando se acalmar, aproveitou a parada para endireitar-se e tentar sem sucesso aliviar o aperto no braço. Alimentou a esperança de que talvez, em nove meses, poderia renascer em outra vida e não pertencer mais aos rejeitados.

Atravessaram a Ala Restrita, chegando à parte médica, onde mais um guarda bloqueava a passagem.

— Outra fertilização?

— Sim, estão sempre precisando aumentar a produção.

— Mesmo com tantos rejeitados?

— Parece que sim, eles não aguentam muito tempo mesmo.

O que guardava a porta permitiu que os dois atravessassem, lançando um raro olhar de misericórdia à mulher.

Do outro lado, a Ala Médica continuava sendo o lugar mais claro que a rejeitada se lembrava. Ela já conhecia o procedimento, deixou-se ser conduzida à cadeira inclinável, sem forças para resistir. Os braços foram atados junto ao corpo e a injeção aplicada rapidamente.

Logo as luzes se apagariam.

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