Cumulus Nimbus

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O café deveria acalmá-la. No entanto, não conseguia tirar da cabeça a imagem do homem sangrando, estirado no chão, agonizante... A vida se esvaindo dele lentamente, os olhos fixos e sem nenhum brilho, transparecendo a dor causada pelas 9 facadas que levou no peito. Mas, mais do que isso, estava assustada com o fato de esta visão não lhe causar nenhum tipo de remorso, culpa ou repulsa. Pelo contrário: sentia-se triunfante.
     Da janela do café conseguia ver o céu nublado.
- Cumulus nimbus. – murmurou consigo mesma, enquanto observava a enorme nuvem que pairava acima de sua cabeça, evocando a lembrança daquela tarde...
Caminhavam de mãos dadas, algo que raramente o cara topava fazer. Ela sentia-se imensamente feliz, como sempre acontecia quando estavam juntos. O cara era casado, e por isso não se viam tanto quanto ela gostaria, portanto tentava desfrutar ao máximo o tempo que tinha com ele.
Subiam uma das acuradas ladeiras de Ouro Preto, quando o cara subitamente soltou a mão dela, e enxugou na camisa.
- Como é que sua mão consegue suar até mesmo com esse tempo nublado, sem nenhum rastro de sol?
Ela recolheu as mãos, constrangida, e colocou-as dentro dos bolsos da jaqueta. Olhou para baixo, tentando esconder as lágrimas que já brotavam nos olhos, e murmurou:
- Desculpe.
Naquele instante, começou bruscamente uma chuva forte, que logo em seguida evoluiu para uma chuva de granizo. Correram para debaixo de uma marquise, buscando proteção, mas devido ao vento forte, as pedras eram impelidas na direção deles, de modo que não podiam continuar ali. O cara mexia as pernas, agitado, e olhou para o alto por um longo tempo, aparentemente pensativo. Levou algum tempo nesse ritual, e em seguida disse, sem olhar para ela:
- Ei, escuta. Minha casa é logo ali e, como você sabe, minha mulher está viajando a trabalho. E não podemos continuar aqui, então...
E finalmente olhou para ela, mas apenas por um breve instante, desviando o olhar quase instantaneamente. Não concluiu a frase, e ela a repassou mentalmente várias vezes, checando se havia compreendido certo. Nunca, em todos esses 9 anos de relacionamento, o cara a convidara para entrar em sua casa. Encontravam-se sempre na casa dela e, às vezes, quando a mulher não estava na cidade, ele permitia que frequentassem lugares públicos, mas sempre em horários bem específicos. Será que ele a estava convidando agora?
- Então...? – Disse ela, esperançosa.
O cara franziu o rosto, numa expressão impaciente, e
disse:
- Então, acho que deveríamos ir para minha casa, e esperar essa chuva passar. Ou você prefere ficar aqui?
Pois então ela havia entendido certo! Não era tão louca assim, como o cara sempre dizia. Foi incapaz de

esconder seu contentamento e, com um reluzente sorriso no rosto, respondeu:
     - Vamos para sua casa!
Saíram da marquise e foram correndo até a esquina, onde se encontrava a casa. O cara tirou as chaves do bolso e abriu a porta. Entrou, e já foi se dirigindo para o interior da casa, tirando o casaco e colocando lenha na lareira. Ela, que preferiria ter sido convidada a entrar, decidiu que a porta deixada aberta pelo cara seria entendida como um convite, afinal já havia se molhado o suficiente.
Entrou cuidadosamente, tentando ser discreta e não demonstrar que estava reparando em todos os mínimos detalhes: desde os móveis, passando pela cor do piso e das paredes, até os artefatos de decoração. Avistou vários porta-retratos com fotos de família: o cara e sua esposa sorrindo na praia, o cara e sua esposa em Paris, o cara e sua esposa com a Estátua da Liberdade ao fundo. Em todas as fotos, pareciam um casal modelo, ambos muito bonitos e muito felizes, aquele tipo de casal que todo mundo acredita ser perfeito.
O cara, que estava muito concentrado tocando fogo na lareira, pareceu subitamente se lembrar de que ela estava ali. Encarou-a por alguns segundos, e depois olhou em volta, como se estivesse ponderando, e disse:
- Bom, já que você está aqui... – E foi lentamente se aproximando dela, abrindo o zíper da jaqueta e jogando-a no sofá.
Ela não se sentia à vontade ali. Naquele mesmo sofá, o cara já havia se deitado vezes sem conta com a esposa.

Aquela casa era um lugar que ele tentou manter em separado do relacionamento deles durante todo aquele tempo. Ela nunca gostou disso, mas agora percebia que era melhor assim. Sentia que estava violando um recinto sagrado e, por mais apaixonada que estivesse, naquele momento não sentiu desejo algum. Sabia apenas que precisava sair dali o mais rápido possível.
- Espera... – Ele disse, relutante. Era a primeira vez que diria não para o cara. – Não quero fazer isso aqui.
Ele parou de repente, seu rosto expressando completa perplexidade.
- Não quer? Como assim? Você sempre quer. – E continuou desabotoando sua blusa.
- Eu sei, mas... Espera! – Afastou-o gentilmente, olhando nos seus olhos. – Aqui não. Não estou me sentindo bem.
- Como assim?! Deixa disso, não tem nada demais. – Deu um sorriso zombeteiro, e prosseguiu na sua missão.
Ela começou a se sentir incomodada. Afastou-o mais uma vez, e se sentou no sofá.
- Eu não quero. – Disse, definitivamente.
O cara olhou para ela como se não acreditasse naquilo. Seus olhos demonstravam um misto de raiva e apetite incontroláveis. Mas ele não tinha intenção de ir a lugar nenhum. Forçou-a contra o sofá e se debruçou por cima dela. Desistiu de desabotoar botão por botão: com um único movimento, rasgou a blusa de cima a baixo.
     - Se você não quer, então para quê você serve?

Na mesa do café, enquanto se lembrava daquele dia, percebia que não era mais a garota indefesa que mergulhou de cabeça num relacionamento abusivo, com um cara casado, que a chamava de louca constantemente. Não! A lembrança dos olhos dele cheios de raiva, e da dor lancinante que sentiu foi substituída por uma nova imagem: os olhos transbordando de lágrimas, implorando-a por piedade, no intervalo entre uma facada e outra.
O plano fora cuidadosamente traçado. Decidiu que esperaria até que a mulher dele viajasse novamente. Agora que já tinha ido à casa dele uma vez, provavelmente seria mais fácil voltar lá. O argumento fora elaborado no momento em que saiu daquela casa, toda dolorida: na primeira vez estava insegura, e pediria desculpas por tê- lo negado, mas agora achava que isso poderia apimentar a relação, especialmente se fizessem na cama dele e da mulher. O cara, filho da puta pervertido, topou de imediato.
Uma vez dentro da casa, precisaria seguir com o plano sem levantar suspeitas. Levaria consigo uma garrafa de champanhe, especialmente para a ocasião. Quando fosse servi-los, deixaria cair discretamente, na taça dele, algumas gotas do tranquilizante que conseguiu com um conhecido no trabalho. Com apenas um gole, o cara apagaria por pelo menos duas horas, tempo mais do que suficiente para tirar sua roupa e amarrá-lo à cama, nu.
Ela esperaria pacientemente até que ele despertasse. Quando ele abrisse os olhos, levaria um tempo até compreender o que se passava. Será que ele faria a mesma expressão de perplexidade que fez quando ela não quis transar com ele?

Ela estaria com a faca na mão, e diria apenas:
- Eu sirvo para muitas coisas, e nenhuma delas envolve ser sua escrava sexual.
Com isso, desferiria o primeiro golpe. A primeira de nove facadas. Nove facadas, uma para cada ano de namoro. Para cada ano de humilhação, de abusos, de ser levada a acreditar que tinha sorte de ter encontrado alguém, e que mereceria muito menos.
E o olhar dele... O olhar desesperado de quem não consegue vislumbrar uma saída. O olhar de quem já sabe que tudo está perdido, mas que, mesmo assim, ainda fará uma última tentativa aflita de pedir desculpas e se redimir. "Eu sinto muito", ele diz. "Não sabia que você se sentia assim. Mas nós podemos consertar isso. Podemos conversar, e tudo vai ficar bem. É só você me dar mais uma chance."
De golpe em golpe, suas forças se esvairiam aos poucos, e em breve seu discurso fajuto cessaria. E sobraria apenas o olhar de dor, perdendo lentamente o brilho e o último rastro de vida. Essa imagem a acalentava.
Olhou o relógio e se deu conta: estava na hora. Olhou pela janela do café, em direção ao outro lado da rua, e viu, dobrando a esquina, o cara. Todos os dias, no mesmo horário, ele passava em frente àquele café, voltando de seu trabalho na Câmara de Turismo de Ouro Preto. Desde a fatídica tarde, ela se sentava todos os dias naquela mesma mesa, nesse mesmo horário, esperando-o passar. Enquanto aguardava, repassava incessantemente o plano consigo mesma, em busca do conforto que aquela visão trazia. A visão do cara desfalecendo, morrendo, implorando por sua vida.

Enquanto observava-o passar na calçada, pensava no seu devaneio, e em como aquele plano era real para ela. Foi a visão do cara morrendo lentamente e seu olhar cheio de angústia que lhe deu forças para seguir em frente, para encontrar sua resiliência. Muitos diriam que ela era louca, por encontrar conforto em um devaneio, em algo criado pela sua imaginação. Se viria algum dia a executar o plano? Sempre era uma possibilidade.
Acompanhou o cara com o olhar, até que ele virou a esquina e desapareceu. Levantando-se para ir embora, fitou novamente o céu e murmurou, sorrindo:
     - Cumulus Nimbus.

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⏰ Última atualização: Feb 22, 2018 ⏰

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