Sou um padre, formado no Vaticano, mestre nas artes de exorcização e desafiador das mais diversas formas de paranormalidade que a igreja conhece. Mesmo assim, nada me preparou para as coisas que vivenciei e descobri durante minha vida, coisas que desafiaram minha fé, me fazendo quase desacreditar em tudo que aprendi. Espero que o Vaticano não encontre esses escritos, pois o que escrevo aqui são para alertar e não para estimular. Fique claro que nesse momento já devo estar morto, exumado e enterrado como santo ou algo assim, meros títulos dos quais não mereço.
O ano era 1930, nove anos antes da segunda guerra mundial e eu fui chamado a ir a um manicômio na Itália. Não havia sido um convite, foi uma ordem direta do regime fascista da época, a princípio soldados italianos estava tendo surtos, visões, auto mutilações e troca de personalidade, claros indícios paranormais.
Era uma noite de quarta feira, uma lua cheia brilhava no céu escuro- eu escolhia sempre noites assim para realizar as práticas de exorcização- o manicômio mais parecia uma grande prisão, com quatro andares e várias janelas que não deixavam transpassar luz alguma. O pátio principal continha um cemitério embutido, pois os pacientes na maioria das vezes eram negligenciados pela família e destinados a morrer lá dentro. O vento soprava forte, fazendo as árvores dançarem de forma quase saudosista em direção ás lápides, como se rezassem para algum deus pagão. O cheiro putrefato dos corpos enterrados ali invadiam o nariz, infectando cada parte do corpo com aquela podridão mal cuidada.
Uma enfermeira viera me cumprimentar na porta de entrada, uma mulher sorridente e pálida, ela dissera que naquela semana cerca de cinco soldados haviam sido internados ali, todos com sintomas de loucura aguda, troca de personalidade e auto mutilações. Fui acompanhado pela enfermeira até a sala do último paciente a ser internado, apenas 24 horas antes de minha chegada.
A aparência do homem estava normal, ele fora levado a uma sala e preso com algemas a uma mesa, justamente para a minha visita. A sala não era muito importante, não me recordo muito de suas características, porém, ficou marcado em minha memória o teor daquela sessão.
Comecei perguntando perguntas padrões de começo de sessão, o homem parecia estar lúcido, respondia tudo normalmente, até que perguntei se o mesmo tinha uma religião. Ele parou e olhou em meus olhos fixamente, olhos melados e injetados, talvez por conta das drogas do manicômio. A voz que antes era normal se transformou em um som gutural.
--Não é necessário ter uma religião quando se tem fé.
O som de sua voz não parecia vir do homem, e sim de alguns metros atrás dele, o único lugar em que a luz da pequena lâmpada sobre a mesa não chegava.
--Qual o seu nome?
--Sua religião apenas aliena suas mentes ofuscando sua fé.
O homem ainda olhava fixamente para mim, sem mexer a boca sequer uma vez para entonar cada palavra.
--Quem é você?
--Apenas um servo, devoto assim como você.
--Devoto a quem?
--Ele tem muitos nomes, nenhum deles pronunciável. O senhor não parece se importar muito com o que está ocorrendo aqui
--O que você quer com estes soldados?
--Eles são apenas marionetes que serão usadas um dia.
Tirei um crucifixo do bolso e coloquei sobre a testa do homem a minha frente. O ritual em latim já estava sendo recitado, proferido muitas vezes durante os anos.
O homem começou a gargalhar, a gargalhada se tornando cada vez mais alta.
--Seus objetos não tem poder sobre nós. Padre Ludovic, consigo ver seu interior, não é de todo bom.
A voz gutural agora vinha das minhas costas, não ousei olhar para trás, sentia a respiração da coisa em minha nuca, algo gelado. Puxei um vidro de água benta de outro bolso e joguei no homem, ao que parecia a coisa precisava dele.
--Deixe o homem em paz e vá para seu reino profanado.
A gargalhada não só vinha do homem como também de trás de mim.
--Eu gostei de você padre, será um bom fantoche quando a hora chegar, por enquanto apenas complete sua missão.
A luz da mesa se apagou, eu senti algo me puxar para trás abruptamente, uma simples frase fora falada em meu ouvido.
--Liberte-se de sua religião.
Essas palavras pareceram terem sido faladas dentro de minha mente, se espalhando e profanando cada canto iluminado dela, o que aconteceu depois lembro de apenas algumas partes, e não sei se é fruto de minha loucura, mas eu parecia estar rindo, gargalhando abraçado com o soldado, como bons amigos em um bar, saudando algo na escuridão, gritando para o vazio.
Acordei no outro dia em uma das camas do manicômio, internado. A enfermeira que me cumprimentou na noite anterior estava ao meu lado me agradecendo por ter salvado os soldados.
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Diário espiritual de São Ludovic: Primeira aparição
Short StoryPrimeira parte de uma série de contos de horror