Capítulo 1 - Thomas

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Nota ao leitor: A intenção é mergulhar na mente de um surdo-mudo, porém existem coisas que não tem como descrever. Diálogos em itálico representam uma comunicação por Libras. Espero que compreendam os sentimentos, emoções e conflitos através do ponto de vista do querido Thomas.

~Capitulo 1 - Thomas~

Consegue ouvir o som do silêncio?

Parece um paradoxo, mas acredite: para mim existem sons em meio a esse silêncio todo que me acompanha desde quando nasci.

Eu sei que as folhas de papel que o reitor está foleando provavelmente fazem algum barulho, mas acontece que ele é diferente para mim.

Há 19 anos, mas precisamente no dia 22 de julho de 1999, o então pequeno e frágil Thomas Linhares, chegou ao mundo fazendo um escândalo que quase todo o hospital ouviu. Muitos não imaginavam que depois de algum tempo aquele bebe desprovido de audição e consequentemente privado do dom da fala, estaria aqui, fazendo a tão sonhada matrícula em uma universidade pública.

Ganhei na loteria dos problemas genéticos e o meu aparelho auditivo acabou sofrendo uma má formação irreversível, descoberta poucos meses depois do meu nascimento.

Claro que é uma loteria que ninguém gostaria de ganhar, ou que seu filho ganhasse, mas esse pode ser até menor dos meus problemas.

Na verdade, não sei se posso chamar isso de problema.

Agora, nesse exato momento, o que causa medo é o que me espera dentro dessa nova etapa da minha vida.

O reitor me olhou intrigado, tentando disfarçar a preocupação que existe bem lá no fundo dos seus pensamentos, a qual ele claramente não quer que eu fique sabendo.

Tento parecer confiante e neutro quanto as suas preocupações escondidas, pois não é a primeira vez que acontece.

Depois de algum tempo revirando aqueles papéis, ele finalmente disse que estava tudo de acordo com o exigido, porém acrescentou aquele "Mas" no final da frase com o qual eu já tinha certa familiaridade.

Obviamente o reitor não contava com meu superpoder de conseguir ler lábios, então falou bem ali na minha frente.

Ao contrário do que muitos pensam, ler lábios não é tão simples, inclusive não são todos os surdos que tem essa habilidade, por isso, vem acompanhada da palavra "super". Outro fato interessante é que esse poder se faz mais comum naqueles que, assim como eu, nasceram no silêncio.

- Todos os documentos estão de acordo, mas... Dr. Linhares, não temos interpretes de libras aqui na universidade. Reconheço que isso é uma falha do nosso sistema, mas é que...

No instante me surpreendi por ter entendido tudo.

- Vocês nunca imaginaram que um surdo pudesse conseguir uma vaga?!. - Meu pai completou.

- Bem é que... - O diretor ficou vermelho feito pimentão. Era perceptível seu despreparo para um momento como aquele.

- Isso é um absurdo! - Pela gesticulação do meu pai eu sabia que ele já estava nervoso.

Soube imediatamente que eu deveria intervir antes que as coisas piorassem a um nível indesejável para ambos os lados.

Meu pai sempre foi um homem sanguíneo que se recusava a seguir certos limites se fosse para defender seus direitos, mesmo sendo um respeitado médico da cidade, não pensaria duas vezes em socar a cara do reitor.

"Pai, eu consigo ler lábios, posso tentar acompanhar as aulas. O senhor sabe que eu sou esforçado". - O reitor ficou olhando a comunicação em Libras como se fosse coisa de outro mundo.

Uma mistura de surpresa e admiração.

Em momentos como esse, que fico imaginando como meus colegas com a mesma deficiência, porém menos privilegiados, devem sofrer.

Sempre tive os melhores acompanhamentos profissionais, a melhor educação e acesso a toda tecnologia possível e mesmo assim não estava imune a esse tipo de coisa.

"Tem certeza que não prefere estudar em uma universidade particular, você sabe que eu posso pagar por isso filho." - Dr. Linhares disse enquanto o diretor ainda observava nossa conversa com aquele mesmo olhar.

Meu pai tinha um instinto protetor fora do comum. Por causa de tudo que nós passamos juntos ele acabou desenvolvendo uma necessidade de me controlar, por isso, tudo que envolvesse minha deficiência o preocupava cem vezes mais do que qualquer outro assunto.

Apesar dos pesares, meu sonho era justamente estudar naquela universidade. Foi para isso que me dediquei um ano inteiro, com a cara nos livros feito um maluco.

O que eu quero é poder viver na pele o desafio de me formar na melhor faculdade do país e provar para todos que sou apenas surdo-mudo e não deficiente mental.

É duro dizer isso, mas muitas pessoas confundem essas duas coisas.

Perdi a conta das vezes em que fui tratado como um ser humano mentalmente incapaz só por não poder ouvir e falar.

- Meu filho disse que pode ler os lábios dos professores, acompanhar os slides, o quadro, ele é muito esforçado. Acredito que isso não será problema.

- Sendo assim. - O reitor virou-se para mim e estendeu a mão. - Seja bem-vindo a nossa universidade. - Disse em câmera lenta acreditando que aquilo facilitaria o entendimento das palavras.

- Ele agradece. - Meu pai traduziu meu sinal.

- Dr. Linhares, nós vamos dar total suporte ao seu filho. Fique tranquilo, pois farei tudo que estiver ao meu alcance. - O reitor sorriu sem muita segurança.

Percebendo isso, meu pai se despediu sem disfarçar sua expressão de desconfiança, totalmente ciente de que eu estava prestes a passar por períodos difíceis.

E eu também tinha consciência disso, pois durante todo o ensino médio sempre tive uma interprete de libras nas aulas, tudo porque meu pai fez uma solicitação direta ao diretor da escola que aceitou prontamente...

Desde que houvesse um aumento na mensalidade para cobrir os custos.

Agora seria uma nova e desafiadora fase, como adulto, em um lugar totalmente novo, com pessoas novas, uma rotina diferente e...

Um arrepio percorre minha espinha toda vez que penso nessas coisas.

****

Caminhando pelos corredores com destino ao estacionamento comecei a observar como era grande o prédio de aulas.

Muitas salas, indicações de laboratórios e acima de tudo pessoas...

De várias idades, de várias etnias, em grupo ou solitárias, conversando, gesticulando ou simplesmente correndo apressadas para alguma atividade curricular.

Todas fazendo parte de uma comunidade da qual eu também queria integrar.

Do lado de fora, perto da cantina, as mesas estavam cheias. Imaginei que o barulho das conversas estivesse enchendo o ambiente.

Certamente estava, pois a troca intensa de ideias me foi perceptível.

Quase palpável.

Ainda caminhando por aquele espaço, consegui ver do outro lado do prédio, em um lugar afastado, um grupo de pessoas que tocavam instrumentos e pareciam fazer parte de uma bateria de escola de samba.

Com certeza o som dos instrumentos chegava, mesmo que fraco, para se juntar a tudo que acontecia ali.

Já dentro do carro, nos afastando do campus, eu me imagino voltando para o primeiro dia de aula.

Aquilo só aumentou minha curiosidade para saber em qual categoria o dia se encaixaria, dentro das três possibilidades: Bom, ruim ou péssimo.

Se tudo desse certo, dentro de alguns anos o Brasil ganharia um brilhante publicitário, com a imaginação mais fértil já vista no ramo.

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