O diabo é poesia

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Eu precisei fazer uma casinha com as mãos para impedir o vento de atrapalhar ela enquanto tentava acender o cigarro. Ela não pediu, mas fiz de qualquer maneira.

— Você não precisava fazer isso. — falei enquanto ela tragava. Estava frio. Coloquei minhas mãos em meus bolsos.

— ‎Fazer o quê?

— ‎Me levar para casa. É um pouco longe.

— ‎Tudo bem, a festa estava chata de qualquer jeito.

Eu não saberia dizer. Não sabia como era uma festa legal para afirmar que aquela estava chata. Foi a primeira festa da minha vida, no auge dos meus dezesseis anos. Nós tínhamos a mesma idade, mas ela claramente era muito mais experiente. Não apenas em festas, mas em tudo.

Bem, eu não tinha plena certeza disso, apenas era o que aparentava. Não éramos íntimas. Colegas da escola, no máximo.

— Além do mais — ela disse, soltando a fumaça pela boca. Me preocupei que meus pais sentiriam o cheiro do tabaco em minhas roupas mais tarde. Passei a caminhar um pouco mais distante dela, mesmo que o que eu quisesse fazer fosse o contrário. — É perigoso para meninas andar à noite. É perigoso para qualquer um, na verdade, mas principalmente para meninas.

— ‎Mas você é menina também. — falei, tentando fazer alguma brincadeira.

— ‎Não, não. — ela sorriu — Não sou.

— ‎Não? Então o que você é?

Nós demos mais alguns passos antes dela me responder:

— Eu sou o diabo.

Me olhou, buscando uma reação. Não tive nenhuma. Já havia ouvido ela dizer isso mais vezes. Parecia ser alguma piada interior.

— E você é um anjo. — continuou.

— ‎Ah. — foi a minha resposta.

As piadas sobre eu ser filha de um pastor. Sobre eu ir à igreja todo domingo. Sobre o colar com pingente de Jesus em meu pescoço.

— Não, é verdade. — ela parou de caminhar de repente. Senti uma de suas mãos em meu braço. Frente à frente, nós nos olhamos. A rua estava deserta. Cidade pequena é sempre deserta. Nós poderíamos fazer qualquer coisa ali que ninguém veria. — Você é.

— ‎Eu sou...?

— ‎Um anjo.

— ‎E você não é o diabo. — tive coragem de dizer.

Ela piscou. O cigarro ainda estava em sua mão.

— Eu sou o quê, então?

Desviei o olhar para seu antebraço. Estava com uma blusa de manga longa, mas eu já tinha visto a tatuagem antes. Um triângulo negro invertido.

Eu sempre gostei de história. É assim que sei que nazistas marcavam homens homossexuais com um triângulo rosa invertido. O negro era para mulheres lésbicas, feministas, anarquistas ou que simplesmente não seguiram o padrão de mulher que desejavam.

Não concordo com a tatuagem.

Aquela garota seguia exatamente o padrão de mulher que eu desejava.

Que eu desejo.

— Você é poesia. — falei. Gostaria de poder dizer que estava bêbada naquele momento, mas a verdade é que só fui colocar uma gota de álcool na boca dois anos mais tarde. Eu estava sóbria até demais. Talvez eu tenha passado minha vida toda afundada no alcoolismo e aquele tenha sido meu momento de sobriedade.

Qualquer um iria rir de mim, mas ela não. Jogou o cigarro no chão, pisou nele então olhou para mim.

— Eu não sou poesia. Nem gosto de poesia. Quero dizer, só li o obrigatório pra aula de literatura.

— ‎Eu não. Eu gosto. Você é uma. Uma poesia muito boa.

Ela mordeu o lábio. Ela, a garota com uma tatuagem com o símbolo de anarquismo no pescoço, o cabelo raspado no lado e um cheiro de cigarro mentolado que me deixava enjoada.

Eu a olhei. Olhei verdadeiramente. Eu, com meu cabelo que quase chegava na cintura, dezenas de versículos bíblicos gravados na memória e livros escondidos em um canto estratégico do meu quarto. Meus pais me matariam se soubessem o tipo de livro que eu leio.

Meu pai diria que a bíblia é o único livro de que preciso.

Ele estava errado.

Ela se aproximou.

Poesia.

Algumas pessoas são como poemas de métrica perfeita, rimas interpoladas e palavras difíceis. Ela não. Ela é um poema concreto que foi pensado por uma semana inteirinha, mas a maioria quando a lê diz que não faz sentido nenhum, diz que aquilo não é arte.

Como se alguém pudesse realmente definir o que é arte. Como se arte não fosse a mais pura e honesta expressão de tudo o que tem de egoísta, sujo e doloroso de dentro de si.

Eu me aproximei.

Poesia.

Medo imbecil de amar.

Que coisa idiota. Eu não deveria ter medo de amar.

Eles é que deveriam se envergonhar por achar que eu deveria ter medo. Que eu não deveria me entregar.

Os lábios dela tinham exatamente o gosto de eu imaginei que teriam. Cigarros, menta, terra e inspiração.

Senti falta daquele sabor no exato instante em que ela se afastou. Suas mãos estavam em minha cintura. Que gentileza.

— Como Olavo Bilac? — ela perguntou, seu rosto ainda incrivelmente próximo de mim, mas não próximo o suficiente. Jamais estaria tão próximo como eu queria.

— ‎O quê?

— ‎Você disse que eu sou poesia... Poesia igual Olavo Bilac?

Ela claramente não entendia nada do que estava falando.

— Não. — afirmei, com seu rosto em minhas mãos. — Igual Bukowski... Ou Coralina.

— ‎E isso é bom?

— ‎É terrível.

E foi. Terrível.

Eu nunca mais senti o gosto de cigarro mentolado em minha boca. Ela formou na escola e mudou de estado. Cursou administração, casou com uma pessoa que não era eu e se divorciou.

Eu vi uma foto dela no jornal semana passada. Não tem como não lembrar daquele rosto. Eu só não queria que as palavras "assassinato" e "homofobia" tivessem ao lado daquela fotografia.

Agora, ela era estatística.

Nada de surpresa. Viveu até demais, pra pessoas como nós. Se é que um dia viveu.

Ela pode ter morrido, mas apenas fisicamente. Poesia não morre. Ela é poesia. Nós fomos poesia, naquela noite.

Nós fomos.

Eu nunca mais fui. Permaneço embriagada desde então, procurando por mais uma noite de sobriedade.

O diabo é poesiaOnde histórias criam vida. Descubra agora