OBSESSÕES

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Aproximadamente 1243 palavras.



A porta do banheiro é aberta com violência.

As mãos de Lázaro tremem. Talvez pelo esforço, talvez pelo nervosismo. Muito provavelmente por ambos. Além disso estão tingidas com sangue quente e viscoso. A mão que segura a faca tem dificuldade de acionar os músculos dos dedos para soltar a ferramenta dentro da pia.

Tentando acalmar-se, começa a recitar suas razões como um mantra de autoconvencimento.

"Foi necessário! Foi necessário!"

Esfrega uma mão sobre a outra na tentativa de se limpar tanto por fora quanto por dentro.

"Era para ser só a criança, não a família inteira."

O sangue diluído pela água escoa pela pia. Já o sangue na faca ainda está ali. Lázaro a posiciona debaixo da água corrente da torneira para lavá-la. Alguns poucos segundos depois, a lâmina está em toda sua plenitude metálica. Como se não houvesse sido usada. Nem para matar.

Lázaro olha para o espelho e se encara. Ao mesmo tempo fala ao seu reflexo:

–Lembre-se, quem está matando a humanidade?

Ele espera pela resposta que já conhece. E a ouve apenas em sua cabeça.

– Não ouvi. Dá para repetir?

Lázaro coloca a mão na orelha do mesmo lado, para "escutar melhor" sua própria resposta interna.

– É eu sei. Ele matou a minha família. Então porque não me sinto melhor?

A resposta para sua própria pergunta é um soco no espelho. Seu reflexo fica fragmentado. Sua mão treme.

Sai do banheiro e bem na porta encontra o corpo de uma criança sem vida caída no chão. Um menino com idade entre 11 e 13 anos, cabelos louros e usando um uniforme de educação física. O uniforme, com diversos furos, está tingido pelo vermelho do sangue da própria criança. Lázaro retira de seu próprio bolso um caderninho de anotações e do meio deste, uma foto. É uma foto surrada e nitidamente escaneada do original e reimpressa tantas vezes que já se perdera a conta. A foto original possui um estilo polaroid, mas cortado na borda direita. Nela, há um casal sorridente e um menino de cabelos louros. O casal à esquerda e o menino a direita.

A foto é a única forma de identificação do alvo e colocada ao lado do rosto do menino confirma sua identidade.

Sim, é ele.

Lázaro cumprira sua missão de salvar a humanidade.

Ficando de pé, guarda a foto no caderninho, faz mais algumas anotações neste, guarda-o na calça e do bolso interno de sua jaqueta, retira um artefato na forma de uma caneta retrátil.

Vários operativos já haviam voltado no tempo tentando descobrir a verdadeira identidade do líder que provocaria o combate sem sentido. Poucos perceberam sua estratégia: dizer o que se gostaria de ouvir, fazendo o povo escutar com o coração, não com os ouvidos. Usando as emoções de uma época já conturbada, confusa e já com um medo grande de um inimigo invisível. Uma época repleta de conflitos violentos, insegurança, desesperança. O líder extirpou tais sentimentos dando um rosto ao inimigo e com isso todos puderam descontar suas falhas e frustrações no próximo e ainda serem recompensados por isso.

Mesmo manipulando grandes massas, o líder era esperto o bastante para ficar incógnito. Ensinou a técnica das células na qual pregava suas ideias de ódio e intolerância a alguns poucos e os colocava em posições-chaves até executar o ataque. A população o adorava e nem percebia o caminho sendo percorrido em direção ao abismo da extinção deixando a humanidade em sua beira.

Minucioso na execução de seu plano, não deixava rastros por onde passasse. Isso dificultou a identificação de sua origem. Mesmo para aqueles que conseguiram criar a máquina do tempo.

A Máquina do tempo. Ninguém gostava da ideia, era arriscada e muito perigosa. Fora uma solução desesperada para um problema desesperador. O velho cliché de mudar o passado para reconstruir o futuro. Podia dar muito certo, ou muito errado. A ideia era voltar no tempo e com ações cirúrgicas, evitar o surgimento do líder. Mas para isso eram necessárias informações. Assim, cada viagem trazia um pedaço do quebra-cabeça até um operativo conseguir a foto de identificação do menino.

Lázaro aciona a caneta. Um relógio em sua lateral pisca duas vezes e surge um cronômetro regressivo. Ele a coloca no chão, longe dos objetos, para que seu apoio tático no futuro triangule sua posição mais facilmente. Basta ficar no pequeno raio de atuação do aparelho para voltar ao seu tempo.

Cinco minutos.

Isso é todo o tempo que ele possui.

Sua missão fora cumprida e agora Lázaro está voltando para casa. Talvez a linha de tempo não seja o que ele está esperando, mas com certeza há de ser melhor do que a que ele conhecera.

A raiva e o ódio que essa figura carismática trazia em seu peito era simplesmente inconcebível. "O que será que o fez se tornar aquele monstro? Pouco importa agora. Ele não existe mais"

Quatro minutos.

Apesar de ser perigoso, Lázaro resolve olhar o resto do local enquanto aguarda o retorno ao seu tempo. Afinal será a última viagem dele de seus amigos operativos. Há tempo para isso, e esperar nunca foi uma virtude sua.

Três minutos.

A casa é simples, com moveis simples. Uma família típica. Os aparelhos eletrônicos, as coleções de filmes, o console de videogame, tudo como nos livros que aprendera quando ainda existiam. Lázaro admira os utensílios da época com os olhos satisfeitos por ter conseguido seu objetivo.

Dois minutos.

As fotos na parede chamam-lhe atenção, primeiramente por ainda usarem papel afixado, e em um segundo momento por ter vários retratos demonstrando uma família feliz.

Um minuto.

Uma em especial se destaca no mosaico fotográfico.

A foto de um casal sorridente ao lado de um menino louro e de uma criança da mesma idade, porém de cabelos pretos, ambas com o mesmo uniforme. Os olhos de Lázaro se arregalam. "É a mesma foto!". Lázaro segura sua foto ao lado da imagem fixada na parede. Percebe que a sua foto está incompleta. Falta a criança de cabelos pretos.

Lázaro se desespera ao perceber o erro. Eram duas crianças, e uma delas ainda está viva! Eles não tinham como descobrir que a foto estava incompleta. Pensando rápido, pega um dispositivo de seu outro bolso para tirar uma foto da descoberta antes que acabe seu tempo. Quem sabe assim um outro agente consiga terminar sua tarefa.

Ele prepara o dispositivo para fotografar quando percebe que a porta do banheiro se mexeu. Um rosto surge atrás da porta, escondendo o restante do corpo na parede do banheiro. Ela havia se escondido no espaço entre a porta aberta com brutalidade e a parede e só agora que ela sai. O olhar da criança é de puro horror. Lázaro a reconhece da foto na parede.

No momento em que ele resolve apanhar a foto do mosaico, a caneta vibra na mesa. Ele corre para o raio de atuação, mas é tarde. Uma esfera surge como uma bolha de vidro cortando seu corpo ao meio. O braço com a foto entra na área de atuação. Em poucos segundo a caneta e tudo que estava ao redor do raio de atuação do dispositivo desaparece. Uma parte do corpo de Lázaro fica caído na sala, enquanto um pedaço da foto com a imagem do menino de cabelos pretos cai no chão.

A criança, com o queixo trêmulo de pavor, aproxima-se do que restou de Lázaro. No bolso da calça ele encontra o caderninho.

O caderninho com todas as anotações de sua missão.

FIM

ObsessõesWhere stories live. Discover now