Outono - Parte III

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As fêmeas passaram sete luas quietas, num luto velado. O espírito delas parecia vazio e triste parecendo imitar a natureza, quando os galhos perdiam cada vez mais suas folhas velhas e secas, e os rumores da neve já começavam. Ele sempre convidava a Cinzenta para suas caças, agora já ficava claro no bando que ele tinha uma afeição especial por ela. Ela sabia disso e até correspondia, só não eram dias alegres para se demonstrar.

As luas se passaram, e um dia ela aceitou o convite. Iriam caçar os orelhas-altas, portanto ele não julgou necessário convocar os irmãos desta vez, apenas queria melhorar os humores da fêmea. Naquela tarde bem ensolarada, resolveram ir ao bosque mais próximo do covil. Era uma pequena clareira no meio de muitas árvores, e ali muitos orelhas-altas ficavam na grama rasteira, porém eram bem alertas e ariscos, não sendo uma tarefa de todo simples. Quando começaram a se aproximar do lugar, ele sinalizou para irem lado a lado, esperando o momento propício para partirem junto à presa que localizaram. Porém, para a surpresa dele, ela não concordou com sua tática de líder e começou a dar a volta na clareira, pretendendo atacar pela extremidade oposta do bosque. Normalmente ele teria repreendido um irmão que não o seguisse, mas daquela vez, ficou apenas olhando absorto a fêmea lhe dando as costas como se o estivesse desprezando. Para sua própria estranheza achou aquilo engraçado, como as brincadeiras que fazia quando era apenas um filhote. Pois então entendeu o que ela queria: seria uma corrida à presa, ela de um lado e ele do outro, um puro e simples desafio de velocidade. Só poderia ser brincadeira para ele, pois sua mãe era a maior velocista que ele já havia visto e poderia jurar que isto estava no seu sangue.

Tomaram suas marcas e ele avistou os olhos de Cinzenta de longe. Partiram correndo no mesmo momento. Para sua surpresa, absurdamente ela chegou primeiro, abocanhando o orelha-alta por mais de um corpo de distância. Ele odiou perder, mas quando a observou a felicidade, a amou. Naquele entardecer eram só eles, nenhuma matilha, nenhum rival, nenhuma obrigação, nenhum problema. O romance emergiu, e tiveram seu momento. Foi talvez o dia mais feliz de sua conturbada vida, pois agora tinha uma companheira a quem amava e com quem tinha tudo para continuar sua história. Dormiram ali mesmo naquela noite.

**

Ele não parava de se remexer, sua mãe, sua mãe, precisava ver sua mãe... Dentes grandes apareciam em imagens, patas enormes, uma figura altaneira negra o observando, sua irmã gritando cega, a neve caindo e sua mãe, sua mãe... Acordou desesperado, num sobressalto total. Desorientado, olhou e viu Cinzenta despertando assustada do seu lado naquela madrugada. Ele estava confuso, seu coração estava acelerado sem nenhuma explicação. Então chamou Cinzenta para que voltasse correndo com ele ao covil e ela o fez. Ele não esboçou nenhum sentimento no caminho, senão desespero e uma adrenalina sem motivo algum aparente. Quando chegaram ao covil, ele lambeu a face de Cinzenta e disparou saindo dali. Ela quis acompanhá-lo, mas este virou e lhe repreendeu, saindo sozinho. Ela não tinha um bom pressentimento daquilo, mas ele deixou bem claro que queria ir sozinho, buscando algo que não compreendia, apenas sentia. Ela assentiu com o coração aflito.

Ele corria desesperado, sem saber ao certo de onde ir, apenas com um pensamento: sua mãe... precisava achar logo sua mãe. Até pensou em ir de encontro à matilha do rei, não estava raciocinando direito e podia muito bem fazer esta loucura. Mas apesar de tudo, sabia que ali não era o lugar certo, e quase como vida própria, suas patas levavam à outra direção: à antiga caverna. Tudo apontava para ali, só podia ser ali! Não havia cansaço, não havia terreno, seu corpo avançava se alimentando apenas deste único pensamento. Logo ele percebeu que já cobrira boa parte do percurso, o que seria impensável numa situação normal, mas realmente não se cansava, era apenas seu coração que ficava mais e mais aflito. Quando já estava quase chegando, seu espírito deu um estalo e ele parou bruscamente. Ele sentiu, sua mãe estava naquela região. Então começou a uivar descontroladamente, chamando sua mãe, na esperança de que esta o reconhecesse e respondesse ao chamado. Nada ouviu por um tempo, mas à medida que foi se aproximando da caverna, aonde um dia chegou ao mundo, começou a ouvir ladridos fracos, parecendo que iriam cessar. Disparou, chegando até o local.

Lá estava ela, deitada ao relento, logo fora da caverna. Sua mãe... Alva, bela, porém fraca e com a vida vacilando. Seu coração apertou tanto que não conseguia soltar sequer um ganido, e suas pernas tremiam parecendo que finalmente haviam se cansado da longa corrida, mas não era isso. Ele se aproximou da mãe, lambendo-lhe a face, porém esta não demonstrava muita reação, e a respiração estava ofegante demais. Ele deitou de frente para a mãe, desconsolado e assustado, como quando era apenas um recém-nascido. Foi quando a mãe lhe olhou nos olhos e o reconheceu. Seu coração se aqueceu por aquilo e ele começou a tentar animar o espírito da mãe. Porém era chegada a hora, ele e ela sabiam disso... Num último esforço ela levantou o rosto e lhe lambeu a face, feliz por ali, no fim das coisas, ter seu filho ao lado. Quando ela deitou novamente, encostou a face no chão e fechou os olhos devagar, numa última respiração longa e suave, como que devolvendo o sopro da vida que um dia havia recebido e seu espírito abandonou aquele mundo. Ele ficou ali, imóvel por um tempo, sem poder reagir de forma alguma. Por fim se levantou, e uivou da forma mais triste que todo aquele lugar já testemunhara, de modo que sua e outras alcateias puderam ouvir. Cansado, apenas deitou seu corpo branco junto ao da mãe, parecendo uma coisa só. E mesmo com o calor da mãe se esvaindo, ali procurou dormir como quando fazia em seus dias de filhote, se aninhando o máximo que podia.

Naquela mesma noite, os primeiros flocos de neve começaram a cair.



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