O Museu

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Suas orelhas zumbiam. Sua memória falhava.

Se lembrava de uma luz que lhe cegava os olhos. Lembrava do gosto do uísque e do vômito na língua. E também um terceiro líquido. Este não sabia dizer qual era.

Caminhava por um corredor estreito, com a largura de seus ombros. Pouco á sua frente, um rapaz de cabelo lambido e vestido como um mordomo (pelo menos é assim que Roger o descreveria), andava mostrando o caminho. Porém não era necessário. O corredor não continha curvas ou portas, tornando os únicos caminhos disponíveis seguir em frente ou voltar. De vez em quando o mordomo (que para Roger podia ter de 20 a 40 anos de idade) virava o rosto para garantir de que seu hóspede continuava ali.

Passada a confusão mental, notou o espaço à sua volta. As paredes eram pintadas de vermelho sangue e ambos o chão e o teto eram compostos de uma madeira escura, sólida. Lamparinas rústicas mantinham uma iluminação mediana e agradável. Seria possível ler um livro ou tirar um cochilo. Um tapete vermelho cobria o chão, como aquele onde os famosos desfilam e posam para fotos em ''eventos importantes''. À altura dos olhos, variados quadros com molduras diferentes se intercalavam, preenchendo as paredes.

Roger corria os olhos pelos quadros. Havia algo diferente ali. Eles pareciam se mover. Como se a tinta estivesse viva. Fechou as mãos em punhos e coçou os olhos rapidamente. Ainda se moviam. Pensou que podia ser alguma ilusão de ótica, então se moveu para o próximo quadro.

Neste havia um rei, de capa vermelha e coroa dourada, amarrado a um poste. Aos seus pés um fogo crescia e a fumaça sufocava seu rosto. Preenchendo o quadro, em volta da fogueira, centenas de mulheres comemoravam com seus punhos cerrados e braços para cima. Elas não estavam bem vestidas como o rei. Vestiam trapos, muitas descalças e sujas. Pareciam ter esperado suas vidas inteiras para ver aquele homem queimar.

O mordomo parou de caminhar e se virou.

- Gostou deste? - ele perguntou. Sua voz era convidativa. Roger nem sentiu vontade de mandá-lo a merda, como normalmente faria com seus professores. - Você não é muito fã de história, não é mesmo Roger? Bom, este rei condenou e queimou milhares de mulheres inocentes por bruxaria. E aí, neste quadro, ele está sentindo na pele a injustiça que causou. Poético, não?

Roger assentiu. Ainda estava pego de surpresa na situação, mas o quadro lhe parecia justo. Seguiu adiante.

Sentia-se como em uma visitação de um museu de artes e história que fazia com a escola, mas pela primeira vez estava gostando. Não tentou sair de fininho para o banheiro fumar um baseado ou roubar chaveiros brindes. Claro, não teve a oportunidade, mas tinha certeza que se ela chegasse não se sentiria tentado.

Roger relaxou um pouco e começou a andar devagar, deixando seus olhos por mais tempo em cada quadro.

- Ei, eu sei quem é esse aqui - Roger disse animado após reconhecer um dos personagens no quadro. - É Hitler, não é? Claro que é, tem até o bigode do Chick Hicks.

- Ah, sim... - o mordomo sorriu sem mostrar os dentes. - Admito que é um dos meus favoritos.

Roger e o mordomo ficaram em silêncio, admirando a pintura. Hitler se encontrava nu e encolhido em uma câmara de gás, com as mãos apertando a garganta enquanto urrava de dor. Sua pele estava coberta em bolhas. Roger tomou um susto quando notou ratos correndo ao fundo, na escuridão. Pequenos olhos verdes e curiosos brilhavam esperando o jantar. Novamente teve a sensação de que o quadro estava vivo.

Mas algo estava errado ali. Algo no fundo de sua cabeça repleta de informação inútil (como todas as falas decoradas de American Pie) lhe pinicava.

- Não foi assim, foi? - Roger cuspiu a pergunta. O mordomo lhe fitava com interesse. Finalmente estavam chegando a algum lugar. O idiota não era tão idiota. - Quero dizer... que Hitler morreu. Não foi em uma câmara de gás.

- Tem razão Roger, não foi assim. Mas deveria ter sido, você não acha?

- Não tô sacando esse papo, cara.

- Se você levar em conta tudo que ele fez, esta pintura representa um castigo perfeito. Não concorda?

- Errr... acho que sim. O rei daquela pintura anterior também, né?

- Perfeitamente, Roger.

Roger pareceu satisfeito. Havia entendido algo. Em um museu. Foi uma sensação única. E foi após esse breve momento de orgulho próprio que ele notou. O leve sorriso sumiu de seu rosto. Todos os quadros representavam algum tipo de castigo. Pessoas sendo torturadas de todas as maneiras possíveis. De chicotadas a envenenamento. Mas nenhuma estava morta. Todas sofriam. Nunca encontraria um quadro assim na casa de sua avó.

Hesitante, Roger perguntou:

- O que eu tô fazendo aqui?

- Siga-me, temos mais um quadro para ver. Este lhe responderá todas suas perguntas.

Voltaram a caminhar. Agora se houvesse a chance, escaparia para o banheiro. Finalmente chegaram ao último quadro. Roger o encarava confuso. Estava branco. Vazio. Apenas uma moldura presa na parede, sem conteúdo. Sua cabeça começou a doer.

- Parabéns Roger, chegamos. Este aqui é o seu quadro, que você mereceu com todas suas forças enquanto existia lá em cima.

- Lá em cima... ? - Roger murmurou para si.

O mordomo puxou um caderninho de anotações do bolso de trás da calça do smoking.

- Hmmm, vamos ver. Esfolou alguns gatos... Desligou a calefação da casa da sua vizinha idosa durante o inverno e não disse nada quando ela foi encontrada morta de frio uma semana depois... Ah, achei. Bêbado ao volante, bateu no carro de uma família, deixando a filha mais nova órfã. Que belezura, hein?

Roger tremia dos pés à cabeça. Um filete de mijo quente corria pela sua perna esquerda. Quem era aquele cara? Como ele sabia de tudo isso?

- Q-q-que porra é-é essa? - gaguejou.

- Essa porra Roger, é o Inferno. E este quadro aqui é o seu quarto, onde você vai passar toda a eternidade.

Agora Roger lembrava. O uísque, o vômito. O SANQUE. A luz do farol do outro carro na sua cara, milésimos de segundo antes de bater. O choro de uma garotinha.

- Mas não se preocupe - o mordomo continuou - ninguém vai ver você. Seu quadro vai ficar em um cantinho, esquecido. Uma vez por milênio eu vou passar lá, só porque é meu trabalho, pois eu não tenho o mínimo interesse em ver a sua cara feia coberta de espinhas de novo.

Roger não tentou fugir. De certa forma, estava acostumado com aquela situação. Foi para a detenção muitas vezes durante sua vida. A única diferença é que quem lhe dava o esporro não era o Diretor, e sim o Diabo.

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⏰ Last updated: Apr 06, 2018 ⏰

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