Retirada

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Um ano como outro qualquer, minha semente nasceu naquele berço vivo, que me olhava com ternura me chamando de minha menina. Seus olhos brilhavam ao encarar os meus, seguidos de um sorriso resplandecente. Tocava meu rosto delicado, com seus dedos finos como cordas de violino, enquanto dizia para mim: você é uma menina especial.

Cresci alegremente nos braços de minha mãe, já não tão exultante. Em momentos de distração, a via em prantos desamparada pelos cantos, perguntando-se quanto tempo duraria até o dia. Preocupada, indaguei-a o que a entristecia. Não me respondia, dizia apenas para esquecer, pois não queria que a ideia se cultivasse em minha mente. Meu pai se preocupava da mesma forma que eu. Mesmo sabendo do que se trata, preferiu não comentar sobre. No entanto, sempre respondia a mesma coisa, que o início dói bastante, mas o tempo faz parecer normal. Apesar de não compreender, não insisti, mas todas as noites eu a via rezar, implorando por um dia mais distante, desse doloroso destino que pelo qual todos nós, em algum momento de nossas vidas, teríamos que passar.

Dez anos se passaram, junto com uma longa vida. Minha mãe havia falecido em uma noite fria e meu pai não esteve presente. Estava cumprindo as suas funções com o exército, quando morreu em batalha anos atrás. Até esse dia, já morávamos em outro lugar e devido a ausência de alguém para me criar, fui transferida para um orfanato pelo governo da cidade. Pouco tempo depois, um casal se interessou por mim. Eu tinha boas notas na escola e era conhecida por ser simpática com todos. Não era difícil imaginar um casal se interessando mim, o estereótipo de uma garota perfeita. Eu era diferente das outras crianças, eu era especial.

No meu aniversário de 15 anos, meus pais adotivos fizeram uma comemoração para mim. Meu pai, escritor polonês, trouxe um livro de ficção para mim como presente, e eu sempre gostei de ler. Ele era aventureiro em suas histórias, e costumava sempre a compartilhar comigo sobre as ideias que tinha. Minha mãe adorava a criatividade do meu pai, e desejava viver conosco todas as aventuras que ele contava em suas histórias.

Primeiro de Setembro de 1939.

Nossas vidas mudaram completamente após aquele dia. Fomos sofrendo restrições em nosso convívio na sociedade, até que mais tarde, fomos levados para os guetos. Minha mãe entrou em choque, perdeu tudo, meu pai queria relutar, mas não adiantava, ou obedecia calado ou morreria fuzilado na rua. A única opção, para quem queria viver, era obedecer em silêncio. Não havia espaço suficiente nos guetos, a comida era escassa, o sofrimento latejava todos os dias, em cada um. Meus pais sofreram, deixaram de comer para me dar comida, passaram frio para me aquecer, faziam de tudo pelo amor que tinham por mim. Não havia uma forma plena de agradecer, apenas ajudar com o possível em troca de mais um dia de vida. Não foi o suficiente, minha mãe morreu por desidratação após alguns dias, sobrando apenas eu e meu pai para sobreviver naquele ambiente hostil.

Anos de dor se passaram, a esperança de viver em nós foi como uma chama de uma vela prestes a apagar. Pessoas em condições desumanas de vida ainda caminhavam esperando o momento de morrer, até o momento que nenhum de nós achou que fosse chegar, o fim da guerra. Eu e meu pai, assim como todos, fomos torturados das mais cruéis formas já imaginadas. Eu não conseguia acreditar que finalmente poderia ver o entardecer sem me preocupar se chegaria a ver-lo no outro dia. Muitos de nós morreram, mas uma parcela conseguiu sobreviver. Felizmente, meu pai não teve o mesmo destino de minha mãe. Viveu o quanto pôde, nos protegendo e nos amando até o fim.

Mas eu tive.

"Partindo em um minuto" .-A caixa de som proferiu.

Eu ainda me lembro da nossa antiga casa. Nós estávamos jantando quando bateram em nossa porta. Minha mãe, apreensiva, temia o pior. Meu pai se levantou e foi atende-la.

Era um representante do Estado.

"É a vez da sua filha. Viemos busca-los".-Disse o oficial, em tom brando.

Nossa família foi levada à uma nave. Várias estavam se preparando e outras apenas aguardando a ordem de partida. Meu pai, em prol da nação, foi convocado para a escolta durante a viagem. Eu e minha mãe nos direcionávamos relutantemente para dentro de uma delas. Todos do nosso distrito passaram pelo mesmo processo há três gerações, alguns voltavam, outros não. Um processo perigoso devido a rota a ser cumprida, mas necessária para a nossa evolução, sendo assim, parte da nossa população obrigada a participar, por ordens do governo.

Eu não entendi o que estava acontecendo.

Dentro da nave, algumas duplas se encontravam posicionadas. Pais e mães faziam companhia aos seus filhos. Por conta de nossas idades, foi permitido que no mínimo um responsável nos acompanhasse para a nossa criação na Terra. Eu e minha mãe escolhemos dois assentos, e antes da decolagem ela segurou em minhas mãos.

"Vai ficar tudo bem"- Disse acolhedora. "Nada de mal vai acontecer a você. Lembre-se, você é uma garota especial."

E me deu um beijo na testa.

Partimos, então em direção à Terra. Infelizmente, o processo não foi pacífico, demos de encontro com um exército inimigo, o que gerou uma batalha levando a morte de parte de nossa escolta, todavia, tivemos a vitória e a viagem prosseguia. Na chegada, cada grupo foi levado a uma casa diferente. Um chip foi instalado em todas as nucas que em seguida projetou um fenótipo diferente para cada um de nós, relacionado á espécie nativa, além de servir como rastreador e gravador de memórias. Minha mãe se uniu com outro pai que veio com o filho e juntos se passaram por um casal.

Passamos um tempo juntos como uma família comum. Eu e meu novo irmão nos tornamos amigos. No início, foi incômodo para nós o disfarce, mas com o tempo desenvolvemos um certo amor por estudar a raça humana. Tudo corria bem, até que mais tarde uma doença terrestre atingiu os nossos pais, o que posteriormente levou-os a óbito.

O enterro dos dois foi feito entre nós e alguns nativos com quem desenvolvemos afinidade. Eu e meu irmão fomos separados no orfanato. Mesmo com a morte de dois do nosso grupo, o projeto continuava, e era interessante para o Estado uma experiência com humanos assumindo as nossas tutelas. Diversas perdas aconteceram nos experimentos passados, dentre elas, a perda dos meu avós, assassinados. Minha mãe era muito jovem na época, perdeu os pais cedo e voltou sozinha no final. Não quis se tratar, teimou em dizer que estava bem, quando na verdade isso sempre a incomodou, até na minha vez.

Em comparação, o meu procedimento não foi muito diferente.

"Decolando em 5.."

Honestamente, eu esperava mais dessa civilização. A ideia de um planeta com vida inteligente atraiu muito o interesse do Estado, porém ainda é muito primitiva em questões de comportamento e tecnologia. Problemas estes, que já superamos. Nem tudo de bom se aplica a nós, nossa evolução tecnológica é evidente, no entanto, regredimos em algumas questões morais por causa disso.
 

 O processo de descobrimento de novas formas de vida foi um sucesso. Nossas memórias serão copiadas, e utilizadas para documentar o comportamento dessa espécie, junto com muitos outros que ainda estão por vir.

"4..."

É uma espécie promissora ao meu ver. Mas ainda alimenta muitos defeitos para um contato mais avançado.

"3..."

O meu experimento acabou, finalmente estou voltando para casa. 

"2..."

Provavelmente, o Estado vai querer voltar a esse planeta de novo, para coletar futuros dados...

"1.."

...e quem sabe, no futuro. Possamos nos conhecer pessoalmente.

"0..."

RetiradaWhere stories live. Discover now