O Acto de Passar a Ferro

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«Cátia Raquel! Já te disse para vires cá! Não te torno a chamar mais vez nenhuma!»

Era bom era, pensou Cátia, disparando sobre mais um inimigo. Engano seu, aquele por acaso era um aliado. Paciência. Da maneira como estava exposto, era um milagre se continuasse vivo por mais cinco minutos.

Outro milagre seria a mãe ir com aquele seu ultimato à avante. Se algum dia isso acontecesse mesmo, não precisaria de voltar a incomodar-se por nada. Principalmente com histerismos que não tinham razão nenhuma de ser. É que nem há cinco minutos a tinha chamado. E ela respondera logo. Disse que ia já. Não estava a mentir. Eventualmente iria.

«Cátia Raquel! Eu juro que vou aí e desligo essa porcaria!»

Resmungando entredentes, Cátia pousou o comando da consola no chão, tirou o auricular que lhe permitia interagir com outros jogadores espalhados pelo mundo inteiro e foi até à cozinha ver o que havia assim de tão importante.

O ar quente tresandava a uma mixórdia de couves cozidas, incenso de baunilha e lixívia. Notou a tábua de passar a ferro montada e suspirou. Já sabia o que aí vinha: mais uma lição sobre a lida da casa.

Mas que raio?! Não era como se ela fosse casar e constituir família dali por uma semana. Ainda mal fizera os 15 anos! Para quê aquela pressa em ensiná-la a cozinhar, a coser meias, a passar a ferro, a lavar a roupa, a sabe-se lá mais o quê, se o tempo em que iria precisar de saber isso ainda estava tão longe? Ainda mais quando tinha alguém que fazia isso por ela.

«Estava a ver que era preciso ir buscar-te,» disse a mãe.

«'Tava só a acabar uma coisa.»

«O que era não podia esperar.»

Era melhor nem dizer nada. Quanto mais rápido se despachasse, mais rápido voltaria à sala para continuar o jogo.

Infelizmente a mãe não quis deixar passar a oportunidade para lhe dizer das boas. «Se passasses menos tempo nessas jogatanas de tiros e te dedicasses um pouco mais ao...»

«Chamaste-me para quê?»

A mãe suspirou, exasperada pela atitude da filha. «O teu pai e eu estivemos a conversar,»

Ó Diabo, isso não é bom!

«e chegámos à conclusão que já está na hora de começares a aprender o ofício da família.»

Alguém me perguntou se estou interessada?

«Mesmo que não fiques a atender, podes ajudar a despachar serviço, o que já é uma grande ajuda.»

«Mas mãe, eu não quero...»

«Não há aqui mas nenhum. O teu pai e eu já acertámos tudo. Se tens alguma coisa a dizer, é com ele que deves falar.»

Cátia tornou a aceitar o destino que lhe era imposto, resignada à inevitabilidade de uma adolescência monótona e sem interesse. Nem pensar em falar com o pai. Comparada com ele, a mãe era a Senhora Flexibilidade.

«Já te ensinei a passar a roupa a ferro, não já?»

Cátia acenou com a cabeça.

«Tens praticado?»

Cátia ia para responder, mas a mãe parou-a.

«Deixa. Prefiro que não respondas a ter de ouvir mentiras. Hoje vou ensinar-te a passar uma pele. É quase o mesmo que passar uma peça de roupa, mas exige ainda mais cuidado.»

O Acto de Passar a FerroWhere stories live. Discover now