Consequências

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Como tudo chegou nesse ponto?

Estou sentada na cozinha. Tudo está completamente ensanguentado, mas o sangue não é meu. Uma parte da minha mente não aceita que aquilo de fato aconteceu. Que meu pensamento tomou vida e... eu fiz. Minha parte racional diz que preciso limpar a bagunça. Ele já está chegando.

Na verdade faltam em torno de cinco horas até ele voltar do trabalho, mas imagino que fatiar o corpo de alguém, esconder e limpar tudo demore bastante.

Não acredito que vou sair impune disso.

No armário pego o maior facão que encontro. Vou cortando aos pedaços... Numa surpresa constato que em momento algum fiquei enjoada. Admiro por alguns segundos meu jeito prático: faço o que tenho que fazer, sem titubear. Sou corajosa. Bem, sou o total oposto disso. Penso. Como poderia ser corajosa? Isso me leva a pensar novamente em como, como cheguei aquele ponto.

Consigo cortar algumas partes da melhor forma que posso. Coloco tudo dentro da mala de viagem... Num flashback me lembro do dia que compramos, prometemos conhecer o mundo juntas... afasto aquele tipo de memória. Dolorosa demais.

Limpo o chão da cozinha. Esfrego tudo como se minha vida dependesse daquilo, e realmente depende.

Vou jogar a mala num valão. Com sorte não vou ser revistada, a mala não vai ser encontrada... Sei que minha sorte não vai durar muito, é só somar 2 + 2.

Vou andando pelas ruas carregando a mala. Por alguns segundos paro e coloco a mão no bolso onde está a causa de tudo aquilo. Pego e observo aquele anel, volto para o dia que estava na igreja vendo os votos serem feitos: É tudo pelo meu filho, ele disse. Mas aquilo partiu meu coração, o dilacerou. Naquela época já me sentia culpada por nosso caso, mas ainda assim parecia existir uma atração impossível de resistir. Eu nunca pude resistir.

Jogo a mala numa vala. Aqui, a essa hora, é totalmente deserto. O risco é que eu, numa grande ironia, também acabe sendo vítima de algo.

Tenho que sumir. Não quero ir presa, mas também não quero deixá-lo. Digo para mim mesma que se ele me ama, ele vai me seguir, onde quer que eu vá.

Fico desnorteada ao chegar em casa. É como se aquela vida pertencesse a outra pessoa e não a mim. Vejo uma foto nossa, Clara e eu abraçadas, na formatura.

Diego.

Mais do que tudo quero me jogar na cama e ficar. Mas tenho que ir. Sei que não vou ser capaz de fingir suficientemente bem a surpresa e angústia pelo sumiço e se alguém me viu na entrando na casa ou conseguiu ouvir a nossa briga, o que é bem provável, adeus liberdade.

Coloco o mínimo possível. Queria levar minha casa comigo, mas posso levar apenas uma mochila. Pego os itens básicos, todo o dinheiro que tenho guardado em casa e saio.

Tento coordenar meus pensamentos, sei que tenho que limpar minha conta no banco. Preciso de uma nova identidade.

Tudo que consigo pensar é em Diego. Sempre tive pensamentos obsessivos, mas hoje, por toda situação extremamente tensa eles saíram do controle. Tenho certeza que estou enlouquecendo.

Estou louca.

Apenas finjo ser sã.

Num caixa eletrônico consigo sacar um pouco mais de dois mil reais acumulados. Fugir é decretar minha culpa. Ficar é torcer pela sorte.

Como cheguei a esse ponto?

Fecho os olhos e estou de volta naquele momento.

Deitada na cama. Meu dia de folga. Estou folheando uma revista, mas minha mente está em outro lugar. Me lembrando de Diego em cima de mim, ele está prestes a gozar. Penso em como gostaria de ter filmado. Nem me importaria de filmar todo o corpo dele, apenas seu rosto, sua expressão mostrando completo êxtase. Ele é completamente viciante. Não consigo mais parar de pensar ou de querer.

Meu celular vibra. Diego diz que precisa conversar. Diz que se sente culpado. Diz que tem medo de ser descoberto, de destruir sua família, sente culpa.

Disse que Clara viu as mensagens. Nenhuma incriminadora, mas que foi suficiente para deixá-la desconfiada. Tiveram uma briga. Ele não quer o fim do relacionamento, quer criar o filho. Respondo que então era mentira, quando ele disse que ficaria apenas um par de anos casado, que ele não a amava e estavam juntos apenas... Ele me corta. Diz que precisa ir trabalhar e que não devo mandar mensagens ou ligar. Devemos manter distância. Digo tudo bem.

Já estou no ônibus. Meu telefone vibra.

- Alô?

-Naty, você viu ou falou com a Clara? Ela sumiu.
- Não. - Minha voz falha então repito. - Não vi... Porque?
- Porque ela sumiu. - Ele diz com impaciência. - Você fez alguma coisa? - Diego me pergunta em um tom de voz baixo.

Me sinto estranhamente nua. É como se Diego enxergasse minha mente. Sim, eu fiz, mas sinto raiva por ele supor o pior de mim.

- Se você encostou na Clara...

E então ele chora. Eu desligo a ligação. Dez minutos depois o telefone toca.

- A polícia não está te procurando ainda.
- Mas vai procurar.
- É, ela vai. Você vai embora sem mim? Eu ia te mandar uma carta... com endereço.
- Você está aonde?

Conto do meu plano e ele pergunta:

- Ainda está no país?
- Sim, o ônibus ainda está na cidade...
- Preciso de te ver.

Não respondo de imediato.

- Como assim? A Clara...
- Ela morreu. Eu sei disso, você é louca e tudo mais, eu sei! - Ele dá uma risada ao dizer isso. - Eu só quero me despedir.
- Vão estranhar se não te verem nas buscas...
- Se você não quiser tudo bem. - Ele diz.- Claro que eu quero.

Imagino nós dois juntos essa noite. Se der sorte ele traz o Thomas também. Eu amo tanto essa criança! Sempre metade de mim foi inveja por ele não ser meu filho e a outra metade amor e admiração por ele.

Desço na próxima parada. É um pouco mais que oito da noite... o lugar está mais cheio do que eu gostaria. Ainda assim fico esperando, torcendo para não ter nenhuma câmera por perto. Duas horas depois ele chega. O carro dele para no posto e entro.

Não digo nada. Não olho para ele. Todos meus sentimentos e pensamentos anteriores sumiram. Só sinto vergonha e culpa.

- Você resolveu o problema. - Ele diz.
- Resolvi.

Vamos para um motel na beira da estrada.

- Me desculpa! - Digo assim que entro no quarto. - Eu perdi a noção... Quando você me disse aquilo eu fui até sua casa, tudo que eu queria era tranquilizar ela. Queria que ela parasse de desconfiar, então tudo ia ficar bem. Mas não deu certo.

Eu revejo a cena. Nossa briga. Quando ela começa me acusar e quando eu pego uma faca e avanço na direção. Caímos no chão e entramos numa briga. A partir daí perdi a noção... Parei quando Clara parou de se mexer.

- Eu não queria, eu juro. - Ele tem que acreditar. Apesar de tudo não quero que pense que sou um...

Falta de ar. Meus olhos se arregalam, mas não adianta, tudo fica cada vez mais escuro. Empuro, tento colocar meus braços entre nós, chutar, faço um esforço, mas a falta de ar me deixa sem forças. Aquele é meu último esforço. Parece durar uma eternidade. Diego aperta meu pescoço, cada vez mais forte. Tento pegar o telefone para jogar nele, mas não tenho forças. Tudo vai ficando mais escuro, meu peito arde..

Um ponto sem voltaOnde histórias criam vida. Descubra agora