A noite havia acabado de cair, as primeiras estrelas já brilhavam no céu, e a lua ainda não havia se revelado. E em uma rua, de um subúrbio, de um país de terceiro mundo qualquer, os passos de um jovem que corria, desesperado, alucinado, ecoava cortando o silencio.
O rosto já estava vermelho, as pernas pareciam se mover sozinhas, o coração acelerado, o suor escorria pelo seu rosto e caia em seus olhos atrapalhando a visão, corria tão desesperadamente que conseguia sentir o sangue pulsar nas suas veias. Sua camisa havia sido rasgada quando entrou em fuga, seus sapatos ficaram em algum lugar do caminho, sua calça estava molhada com o suor, e pesada, atrapalhava a sua fuga.
Viu uma senhora olha-lo através da janela, no segundo andar de uma casa, a senhora pareceu olhar dentro de seus olhos e então se assustou com algo e fechou a cortina rapidamente, e em seguida um calafrio correu seu corpo, um estampido em suas costas e viu o projétil zunir, chiando ao cortar o vento, passando a poucos centímetros de seu rosto. O desespero o tomou, mas ele continuou correndo, sem parar, e a adrenalina não deixava que a exaustão o domasse. O jovem fazia agora algo que nunca imaginou precisar, corria pela própria vida. Correu muitas vezes, mas todas por diversão, de todas as vezes que correra na vida, jamais foi tão rápido quando neste momento, jamais com o intuito de sobreviver, jamais com o desespero entalado no seu esôfago tentando, a cada segundo, força-lo a parar.
Outro disparo, e mais uma vez, por muito pouco não o atingiu.
Virou mais uma esquina, sem saber ao certo para onde estava indo, precisava apenas sair da linha dos tiros, atordoar a mira do caçador. Não foi uma boa ideia, era uma rua sem saída. No desespero, pulou o portão de uma casa qualquer, e ouviu as balas atingirem o aço do portão atras de si. Seguiu pelo corredor e subiu uma escada de madeira que encontrou no fim, de onde pulou para o telhado da casa de trás, assim conseguiu acessar outra rua, e continuar com sua fuga. Continuou correndo, com medo de olhar para trás.
O jovem parou poucos quarteirões depois, e se escondeu atrás de um veículo estacionado na rua. Seu corpo pesava, seu pulmão queimava a cada arfar, seu coração batia tão rápido e forte quanto possível, sentiu a língua formigar e doer, sua visão estava desfocada, embaçada, a exaustão estava começando a vencer. Uma dor, aos poucos, tomou sua coxa, e notou que sangrava, a calça jeans que vestia escondia o ferimento, e a pouca iluminação daquela rua não ajudava. Decidiu mover-se antes que a dor o tomasse por completo, não podia ficar parado ali, levantou-se com dificuldade, e a cada passo sentia o sangue escorrer quente por sua perna, e uma pontada lascívia de dor se espalhar por sua coxa.
O caçador o atingira, e ferido o jovem havia se tornado um alvo ainda mais fácil agora. Mancando, continuou seguindo pela rua, e a cada passo a rua parecia ainda mais escura e tenebrosa, fosse pelo medo, ou pela perda de sangue, não faria diferença a essa altura ponderar o motivo, precisava apenas prosseguir. A noite estava escura, as casas pareciam abandonadas, e um cachorro latia ao longe, sendo o único sinal de vida no local. Viu uma luz branca acima de uma casa, talvez fosse a lua, ou apenas uma lampada. Passo a passo, ele seguia, sentindo sua vida ficar no rastro de sangue atras de si.
Então uma voz grave e imponente cortou o ar, fazendo coração do jovem bater tão forte que causou-lhe dor.
- Parado aí. - O caçador vociferou.
O jovem fechou os olhos, a fuga terminou, uma onda subiu pelo seu corpo, algo quente e reconfortante, relaxando todos os seus músculos, anestesiando a dor em sua coxa, lhe trazendo paz. Respirando fundo ele ergueu os braços, e virou-se, devagar, para encarar seu perseguidor.
Temeu olhar nos olhos do caçador, pois sabia que encararia a alma do ceifador de sua vida. E naqueles olhos azuis, escuros como oceano, ele viu que o caçador sentia-se confortável e satisfeito com a situação. A paz que o jovem sentiu segundos antes, transformou-se em negação, raiva, e finalmente em aceitação.
Encarando os olhos do caçador o jovem sorriu, e o caçador presenciou sua vítima se satisfazer com a própria morte, enquanto descarregava a pistola no peito do jovem.
A cada tiro que o acertava o sorriso aumentava no rosto do jovem, ele nasceu para aquele momento, sempre foi seu destino morrer ali através das mãos do caçador. E enquanto os disparos atravessavam seu peito, o jovem entendia o mundo de uma forma que só a morte pode proporcionar. A compreensão através dos olhos e da sabedoria do Universo.Podem lhe repetir mil vezes que sua vida passa diante de seus olhos no momento de sua morte, e talvez realmente passe, em mortes comuns, com pessoas comuns, mas não foi isso que o jovem viu. Ele viu apenas a tempestade rasgando o oceano.
Ele viu o caçador matar sua primeira vítima, e sentiu a satisfação do caçador ao fazer isso, ele viu o caçador ceifar dezenas de almas, e sentiu o desespero de cada alma já ceifada, e daquelas que ainda seriam ceifadas por intermédio das mãos daquele caçador. Ele viu que a alma do caçador estava perdida em tormenta e desgraça, se satisfazendo e se afundando em sua própria crueldade, enquanto a dele navegava confortavelmente até o seio do Universo.Acalentada pelo Universo a alma do jovem viu seu próprio corpo jogado no chão em uma rua, em um subúrbio, em um pais de terceiro mundo qualquer, viu o sangue se espalhar pelo chão a baixo de seu corpo já sem vida, viu o caçador se afastar, e correr fugindo da cena do crime, e sorriu da ironia da situação. O jovem ficou ali por um tempo, preso ao seu corpo, apenas observando. Viu os primeiros curiosos saírem, viu o socorro chegar e desacreditar sua vida, então o universo pareceu o abraçar forte, e carinhosamente, acalenta-lo como sua própria mãe. E sentindo uma alegria tão grande que chegava a entristecer o jovem se uniu ao tudo, e ao nada se tornando a eternidade que espera quase todos nós no fim.
FIM
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O Caçador
Short StoryEm uma rua, de um subúrbio, de um Pais de terceiro mundo qualquer o Universo observa um jovem.