Eu gostava de transcrever músicas em minhas folhas de partitura embaixo da árvore do pomar. Colocava os fones de ouvido, enquanto Chopin ou qualquer outra sonata tocava em meu celular, por vezes preferi transcrever óperas e orquestras para uma sonata, o que - muitas vezes - era complexo demais até para mim, mas aquilo havia fortalecido meu talento musical desde que comecei a fazer. Eu escutava cada nota minuciosamente. Depois, é claro, sentava em frente ao piano da sala de estar e me certificava de que a transcrição havia sido feita da maneira correta. Ás vezes - quando estava sozinha ou escutando os passos singelos de Vel na cozinha - tocava a sonata e fazia breves alterações. Para meu pai, aquela era a melhor parte do meu talento, quero dizer, a capacidade que eu tinha de mexer nas sonatas feitas pelo Beethoven ou Chopin sem necessariamente arrancar suas essências.
Eu também gostava de escrever notas. Tinha esse bloco com folhas marrons e sem linhas, onde eu costumava escrever pensamentos soltos em letras garrafais e com desenhos exuberantes. Eu não era boa desenhista, eram só rabiscos e palavras soltas. Aquele bloco de notas tamanho médio me fazia não enlouquecer, e é claro, as palavras soltas que faziam mais sentido iam parar na parede do meu quarto, grudadas com fita transparente e - muito provavelmente - se transformariam em música mais tarde.
Ás vezes Dinah passava na casa de Ally - uma amiga de infância que morava na cidade - e elas vinham passar um tempo na fazenda. Pegavam algumas frutas do pomar e as levavam para suas mães, ou vinham jogar vôlei no quintal da minha casa, também tinha esse rio estreito que atravessava nossa propriedade, onde os pescadores da região costumavam ficar. Eles vinham até a entrada da nossa fazenda e perguntavam para meu pai se podiam pescar. Meu pai nunca cobrou nada. Ele deixava todo mundo entrar, desde que pedissem permissão, é claro, ainda que a resposta fosse quase sempre sim. Scottsdale inteira sabia que podia contar com a família Cabello. Sempre fomos bem prestativos.
Havia um senhor da fazenda vizinha que vinha pescar algumas vezes, à pedido da minha mãe. Ninguém lá em casa sabia pescar, não éramos bons nisso, mas gostávamos de peixe fresco, então Bart - esse senhor da fazenda vizinha - vinha pescar e levar direto para a cozinha, onde Vel receberia o peixe felizardo da vez e cozinharia uma de suas receitas maravilhosas. Eu gostava de conversar com o Bart, ele era um tipo caladão e misterioso, e essas são as pessoas mais profundas. Algumas pessoas são assim, pensou eu, são misteriosas porque há profundidade demais, e as pessoas - pelo menos a maioria - não costuma ter paciência de chegar ao fundo do mar, quem dirá ao fundo de outras pessoas. Percebi isso ao conseguir arrancar algumas palavras de Bart uma das vezes em que ele foi pescar, sentado na beira do rio e balançando os pés na água gelada. Ele havia perdido sua mulher, disso eu já sabia - Scottsdale inteira sabia - até porque ela morreu em um acidente de carro, e notícias ruins costumam se espalhar como antraz no ar em uma cidade pequena. Acontece que Bart não teve muito o que fazer depois que sua mulher morreu. Seus filhos foram para a faculdade e construíram suas famílias. Pelo menos foi o que Bart ouviu falar, porque ele mesmo se afastou dos filhos e não sabia muito sobre eles desde que sua amada foi embora. As pessoas se trancam. Pensei. Se trancam nelas mesmas. Com Bart não foi diferente. Talvez ter amado sua esposa possa tê-lo mostrado o quanto sentimentos podem nos fazer sentir fracos e vulneráveis.
- Eles me lembram ela. - Bart disse, sacudindo os pés no rio com mais força. Ele era quase uma criança, e eu o tacharia dessa maneira se a barba dele não fosse tão branca.
Enfiamos facas em nossas feridas e é por isso que elas nunca cicatrizam. Refleti. Olhei para o peixe agarrando o anzol e depois para o breve sorriso sutil que surgiu no rosto de Bart. Encontramos o nosso ópio em coisas aparentemente banais e imbecis. Talvez pescar fosse o ópio de Bart, assim como minhas partituras e meu bloco de notas marrom também eram o meu ópio.
- Eu te entendo, Bart. - sussurrei, pousando uma mão sobre seu ombro e sacudindo os pés na água do rio. - Eu te entendo. De verdade.
- Do que está falando? - ele perguntou com a voz esganada, enquanto lutava contra o peixe que tentava se desvencilhar do anzol.
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ME CHAME PELO SEU NOME ● Camren version
ФанфикApós alguns meses viajando, Camila sente que não há mais nada que a prenda em Veneza e resolve voltar para casa, embora seja verão, ela não gosta de estar em seu lar nessa época do ano, pois as atividades de sua mãe já lhe parecem tediosas. Todo ver...