"A marca da sabedoria é ler corretamente o presente e marchar de acordo com a ocasião"
- Homero.
Segundas e quintas eram dias de cumprir detenção por vandalizar patrimônio escolar. Nada muito distante de limpar prateleiras na biblioteca e aturar a simpatia nada convencional de Gleice: a recepcionista que não tinha aptidão para bibliotecária, mas em motivo de férias da mesma, era ela quem cumpria a função.
A primeira coisa que via ao passar pelas portas duplas não variava: Um sorriso alvo, brilhando por detrás de duas fileiras de aparelho – hoje rosa cintilante.
- Chegando cedo... – Ignorei o comentário, lançando a mochila sob uma mesa e já indo em direção à pilha de livros deixada ao lado.
- Separei alguns aí que achei que você gostaria. – Ela insistia, sempre insistia! Girei os olhos ao passá-los pelos títulos que nada me diziam: "Ilíada, de Homero", "A Divina Comédia, de Dante Alighieri", "A Epopeia de Gilgamesh" e "O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde". Um monte de nomes difíceis que eu jamais conseguiria pronunciar sem gaguejar.
Murmurei um "obrigada" xoxo enquanto começava a colocar os exemplares restantes em seus devidos lugares. Era um trabalho fácil, porém monótono como a morte. Um lembrete eterno da atual situação da educação brasileira.
- Você vai ao passeio na quinta? – Ela perguntou, quebrando aquele silêncio sagrado.
- Qual é o problema de vocês com esse passeio? – O tom de voz se elevou alguns níveis, resultando num eco constrangedor. – É só o Museu do Amanhã... – Sussurrei ainda birrenta enquanto a morena me olhava feio. – Não é como se a gente fosse pra Marte e, a propósito, como você bem sabe, tenho detenção na quinta.
- Você nunca lê os avisos nos bilhetes, não é? – Apoiando o queixo numa das mãos, Gleice arqueou uma das sobrancelhas majestosamente. Eu, pelo visto, era a única pessoa do universo que não conseguia fazer isso. Percebendo minha inquietação, a moça continuou. – Atividades extracurriculares valem como tempo de detenção. Aparentemente, eles gostam de tornar essas saídas em castigo. Ainda mais se for a Dona Bianca quem levar vocês.
- Essa mulher não vai se aposentar?
- Eu tenho me feito essa pergunta todos os dias.
Depois da breve conversa e de uma hora interminável de estantes A, B, W e Z, finalmente resolvi matar a aula de matemática e dar uma olhada nos exemplares deixados pela recepcionista. Gleice havia saído para almoçar há vinte minutos e não voltara. Sua ingenuidade a fazia confiar que eu ficaria quieta e não causaria estragos à biblioteca. Por compaixão, eu permanecia tranquila.
O primeiro título que escolhi foi "A Divina Comédia", não pela capa ou pela sinopse vaga, mas em prol do próprio nome. Minha vida era cheia de comédias trágicas e nenhuma delas parecia divina.
A narrativa era rebuscada, porém, tinha os diálogos divertidos e as personagens cativantes. Engoli o primeiro "capítulo" durante a aula de Língua Portuguesa, o que não era uma infração, já que a trama parecia muito mais interessante do que a conjugação de objetos diretos e indiretos. Conseguem imaginar uma sensação dolorosa e prazerosa ao mesmo tempo, misturada ao cheiro de páginas velhas?
A metade do segundo capítulo foi embora durante a caminhada de dezessete minutos da escola até o pequeno conjugado situado ao lado de uma das dezenas de Igrejas Evangélicas do Turiaçu.
Nessas horas, gostava de não ser acompanhada por Cláudio e sua presa da vez. Apesar de não manter o hábito sadio da leitura, foi envolta em Virgílio e o Inferno que passei pela porta, abrindo caminho pelos muitos pares de tênis e garrafas de cerveja.
- Estou em casa! – Anunciei sem receber uma resposta. Pelos pacotes de preservativo vazios espalhados pela sala, a noite foi boa e pelo cheiro de erva forte, tinha durado até de manhã.
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A Lua Dentro de Mim
Novela JuvenilLuna era uma adolescente absolutamente incomum, fosse pela história de vida cheia de altos e baixos e mais baixos ainda ou por, até mesmo, seu nome: Luneta. Que legal ter sido nomeada através de um objeto que olha para as estrelas! Na Europa, seria...