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"O mundo é cego, e tu vens exatamente dele"
- A Divina Comédia. 

Fechei o livro e o deixei em cima da bancada da cozinha. Não havia almoço pronto, mas tinha um pouco de farinha para tapioca e pedaços de queijo velho na geladeira. Deu para quatro porções: Uma para mim e três para meu irmão. Ele sempre voltava se arrastando de fome depois de uma noitada.

Nós mantínhamos esse respeito mútuo. Ele jamais perguntava ou se metia na minha vida pessoal e eu nunca o questionava sobre seus esquemas, ainda que temesse que Jorge acabasse como papai.

Estava na metade da tapioca quando o barulho vindo da porta da frente ecoou na pequena sala. Estava abafado, já que nunca deixávamos as janelas abertas e, como assistia a um filme, não tinha me lembrado de acender as luzes. Meu irmão – ou o que restou dele – entrou tropeçando, causando um estardalhaço nas garrafas. As roupas estavam sujas e não era preciso nem sequer chegar perto para sentir o odor de álcool e sei lá mais o que.

- Eu não sabia que você já estava em casa... – O timbre rouco chegou com dificuldade aos meus ouvidos. Rapidamente, levantei para ajudá-lo a caminhar, passando seu braço por cima do ombro.

- Sempre chego antes das 13h, você é que está perdido no tempo.

- Ah, Luna... Não fica brava comigo... – Agora mais parecia um cachorrinho chorão. Depois de alguns anos, ficou mais fácil resistir ao drama de Jorge.

- Vou parar de ficar brava quando você se lavar, está fedendo! – Sem nenhuma delonga, o lancei de roupa e tudo para baixo do chuveiro. Eu não ia ficar ali observando meu irmão bêbado e pelado, então, fechei a porta e deixei que ele se afogasse nas próprias desgraças, que também eram minhas.

Quando saiu, enrolado na cintura com uma toalha encardida, notei que seu corpo estava marcado por hematomas arroxeados

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Quando saiu, enrolado na cintura com uma toalha encardida, notei que seu corpo estava marcado por hematomas arroxeados. Ele caminhou até a mesinha redonda de apenas dois lugares e disfarçou sua dor, cutucando a bagunça aleatória em cima dela.

- Você brigou de novo? – Perguntei, sem tirar os olhos da TV.

Jorge não respondeu de imediato. Ficamos os dois degustando de um silêncio torturante enquanto buscávamos no canto de cada cérebro, uma escapatória para aquela vida.

- Eu tenho que assinar isso? – Ele sempre mudava de assunto. Com os dedos longos, indicou um pedaço de papel saindo do meu caderno. Era a autorização para o passeio ao Museu do Amanhã.

Dei de ombros em resposta, completamente indiferente.

- Você devia ir... – A sentença continha tanta mágoa que fui forçada a olhar para ele. Uma das mãos segurava as extremidades entre os lados da toalha, para que não caísse e, a outra, cobria o rosto com o papel. – Eu gostaria de ter conhecido um Museu na sua idade.

Aquilo me partiu o coração.

Era verdade que Jorge e seus cachos castanhos jamais tiveram direito a qualquer tipo de educação, lazer ou cultura. Eu me lembrava de quando éramos crianças e ele passava horas de frente às telas em branco, decorando-as com os mais belos padrões abstratos que eu já tinha visto.

Nossa mãe defendia a ideia de que ele fosse estudar em algum colégio para jovens artistas quando a idade chegasse. Agora eu me via ali, roubando toda a adolescência que meu irmão jamais tivera... E nem sequer estava fazendo bom proveito dela.

- Pode assinar... – As palavras saíram como um sussurro.

Jorge me devolveu o papel assinado e dobrado cuidadosamente, entrando, em silêncio, no único quarto da casa para se trocar. Ele dormia no sofá durante a noite, porém, como passava sempre por longas aventuras e noitadas, eu deixava que ele usasse minha cama pelo dia inteiro.

O restante do meu dia se resumiu a 1% de dever de casa e 99% de episódios de seriado coreano... Ao menos neles, parecia possível que a garota pobre, sem cultura ou futuro, encontrasse alguém que a tirasse da miséria e lhe mostrasse um mundo novo.

E ainda tinha que desbravar o inferno com Dante antes de o dia acabar. 

A Lua Dentro de MimOnde histórias criam vida. Descubra agora